CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 19

Fico sempre muito alegre quando recebo cartas tuas. Elas enchem-me de esperança e mais do que promessas já me trazem certezas a teu respeito. Continua assim, é o que te peço com toda a insistência! E que coisa melhor eu poderia pedir para um amigo senão aquilo que lhe peço para seu próprio benefício? Se isto te for possível vai-te subtraindo a essas tuas ocupações; se não, corta com elas de vez! Já perdemos tempo demasiado; comecemos, atingida a velhice, a preparar a nossa bagagem! Em que pode isso atrair-nos a hostilidade? Vivemos no meio das vagas, morramos ao menos no porto. Eu não te aconselharia a fazeres um título de glória do teu ócio 1: não deverás vangloriar-se dele, nem igualmente mantê-lo oculto. Por isso também te não obrigo, à força de condenar as loucuras da humanidade, a desejar que vivas na mais total obscuridade. Faz de modo a que o teu ócio, sem atrair as atenções, não passe totalmente despercebido. Deixa que os outros, aqueles que ainda não tomaram uma decisão a esse respeito, determinem se desejam passar ou não a sua vida na obscuridade. Tu já não tens essa liberdade: a força do teu talento, a elegância dos teus escritos, as tuas relações de amizade com a melhor nobreza colocaram-te sob o olhar do público. És uma personalidade conhecida. Ainda que te retirasses e te escondesses no mais remoto lugarejo, o teu passado impor-te-ia à notoriedade! Não poderás viver no meio das trevas: muito do teu esplendor antigo te seguirá para onde quer que fujas! Poderás, contudo, reivindicar uma vida retirada sem concitares o ódio de ninguém e sem que a tua alma sinta saudades ou remorsos. Afinal, o que abandonarás tu de que possas lembrar-te com desgosto?Os clientes? Nenhum te procurava a ti mas a algo que tu possuías! Os clientes de outro tempo buscavam a amizade, hoje só buscam o proveito! Basta que o velho patrono, sentindo-se iludido, altere o testamento, e a saudação matinal irá ser feita a outra porta. Uma coisa valiosa não pode comprar-se por pouco: considera, portanto, se preferes desistir de ti mesmo ou apenas de parte do que tu eras! Era bom que pudesses envelhecer dentro dos limites modestos do teu nascimento, era bom que a fortuna não te tivesse levado a tal ponto! Uma rápida e bem sucedida carreira apartou-te para longe das perspectiva de uma vida salutar: uma província a administrar, um cargo de procurador, as novas missões que logicamente seriam de esperar! Cargos ainda mais importantes estarão à tua espera, e depois outros ainda. Até quando? Porquê esperar até não haver mais postos que desejes ocupar? Tal momento nunca chegará! Segundo a nossa escola, o destino tece-se a partir dum nexo infindo de causas; idêntico é o nexo das ambições: cada uma gere sempre mais outra! Estás metido numa vida que, por si mesmo, nunca porá um termo à miséria da tua servidão. Retira de sob o jugo o teu pescoço magoado: é preferível que to cortem de uma vez a que to sobrecarreguem sempre! Se te retirares para a vida privada, terás tudo em escala reduzida, mas o que tiveres chegará para te cumular; presentemente, todos os bens e honras que se acumulares sobre ti não bastam para te saciar. O que preferes tu: uma indigência que te sacia ou uma abundância que te deixa esfomeado? O sucesso é, não só ambicioso, como também exposto às ambições alheias, enquanto nada for bastante para ti, também tu não bastarás para satisfazer os outros! Perguntar-me-ás qual o modo de siares dessa vida ?! Seja de que modo for! Pensa nos perigos em que incorreste por dinheiro, nos esforços que te custaram os teus cargos!… Para obteres o teu ócio também tens de arriscar-te, a menos que prefiras envelhecer entre as ansiedades das procuradorias primeiro, dos cargos urbanos em seguida, no meio da agitação e das sucessivas tempestades de problemas que, embora levando uma vida severa e tranquila, nunca conseguirás evitar! Que importam, de fato, as tuas pretensões a uma vida tranquila se o teu próprio sucesso ta não permite? E o que te sucederá se consentires que esse sucesso ainda aumente mais? Quanto mais aumentar o teu êxito, mais aumentarão os teus receios! Gostaria de citar-te aqui uma frase de Mecenas, uma verdade que ele disse no auge do seu prestígio:

é a própria altitude que fulmina os cumes!

Para o caso de me perguntares em que livro escreveu estas palavras, digo-te já: foi no Prometeu. Ele pretendia dizer “que faz os cumes serem fulminados”. Pois bem, haveria algum poder neste mundo que te tornasse capaz de usar tão tola linguagem? Mecenas foi um homem de talento, que poderia ter sido um notável expoente de eloquência romana se o seu próprio sucesso não tivesse feito dele um homem sem vigor, um cadastrado! Aqui tens o que te espera se não começares desde já a colher as velas e a aproximar-te da costa! Mecenas só o fez tarde demais…

Eu bem podia dar por saldada a minha conta com esta citação de Mecenas, mas, se bem te conheço, tu irias descompor-me: só aceitas que te pague em moeda nova e bem cunhada! Sendo assim, há que pagar a dívida com um dito de Epicuro. Aqui vai: “Pensa primeiro em que companhia de quem comes e bebes, e não naquilo que vais comer e beber; refeição sem amigos, é vida de leão ou de lobo!”. Esta situação só será a tua se te retirares da vida pública; se o não fizeres, terás muito companheiros de mesa, cujos nomes o escravo escolherá da lista dos clientes que te vão saudar; é um erro, porém, procurar os amigos no átrio e pô-los à prova na sala dos banquetes! Pior mal não sucede ao homem público e obcecado pelos seus negócios do que tomar como amigos aqueles que o não olham como amigo! Um tal homem pensa que as suas prodigalidades conseguem granjear-lhe simpatias, quando, na realidade, os outros quanto mais lhe devem, ais o odeia: quem pouco deve é devedor, quem deve muito é inimigo! “Pois quê? Então os nossos benefícios não nos conquistam amizades?” Conquistam, sim, mas quando há possibilidade de escolher os beneficiários, quando os benefícios são bem aplicados, e não espalhados ao acaso. Por conseguinte, enquanto ainda estás começando a ser dono de ti mesmo, obedece a este conselho dos sábios: considera que nesta matéria é muito mais importante a pessoa do beneficiário do que o montante do benefício!


1- “ócio” em sentido romano significa o abandono de ocupações públicas e vida política. Não se relaciona, neste caso, com “ociosidade”.

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 18

Estamos em Dezembro: a cidade está coberta de suor! A ostentação desregrada invadiu toda a vida coletiva. Fazem-se estrepitosamente enormes preparativos, como se existisse alguma diferença entre o período das Saturnais e os dias úteis. O fato é que não há qualquer diferença, e por isso mesmo acho que tem toda a razão quem afirma que se Dezembro em tempos foi um mês, agora é um ano inteiro!

Se estivesse aqui ao pé, de boa vontade trocaria impressões contigo sobre qual te parece a atitude a dotar: ou não alterar em nada os nosso hábitos quotidianos, ou então, para nos não julgarem contrários aos costumes da maioria, darmos algo de animação ao jantar e nos abstermos de usar a toga. Na realidade, enquanto antigamente “mudávamos de roupa”em situações de grande agitação e de calamidades públicas, agora fazemos em atenção aos prazeres e aos dias de festa! Se bem te conheço, no caso de teres de atuar como árbitro, não consentirias que fôssemos nem totalmente semelhantes nem totalmente diferentes da multidão de barrete frígio. A menos que consideremos deve ser sobretudo exigentes com a nossa alma em dias festivos, e sermos os únicos a renunciar aos prazeres numa ocasião em que toda a gente se lhes entrega. Será de fato uma prova segura de firmeza de ânimo não acompanhar, não se deixa guiar por um ambiente aliciado de concessões à volúpia. Se é indício de maior constância nos mantermos inteiramente sóbrios em meio de uma multidão ébria a ponto de vomitar, será mais moderada a nossa atitude se nos não situarmos à margem, não nos tornando notados nem nos deixando absorver na turba, isto é, se fizermos a mesma coisa mas com uma diferente disposição de espírito. Afinal de contas, é possível participar numa festa sem cair no deboche!

Tenho, aliás, tanta vontade de pôr à prova a tua firmeza de alma que, com base nos preceitos de filósofos ilustres, forjaria este outro preceito destinado à tua pessoa: fixa alguns dias intervalados nos quais mates a fome com alimentos exíguos e vulgares, e te vistas com roupa o mais possível grosseria, de modo a comentares para ti próprio: “era então disto que eu tinha medo?” A alma deve preparar-se para as dificuldades durante os períodos de tranquilidade, deve-se fortalecer contra as injúrias da fortuna nos períodos em que ela nos sorri. Os soldados fazem manobras em tempo de paz, constroem paliçadas mesmo sem haver inimigos, treinam-se através de esforço supérfluos para serem capazes de afrontar as necessidades reais. Se não queres que um homem entre em pânico durante uma situação concreta, treina-o antes que tal situação ocorra. Este princípio foi posto em prática por aquele que todos os meses imitavam uma situação de pobreza a tal ponto que atingiram quase a miséria extrema, na intenção de nunca terem de recear o que e uma vez por todas aprendesse a suportar. Não penses que me estou referindo aos jantares à moda de Tímon, aos cubículos miseráveis e a tudo o mais que os ricos, entediados da própria riqueza, fazem gala em aceitar. Não, eu quero autenticidade na tua enxerga, no teu saio grosseiro, no te pão duro e intragável! Leva esta vida uns três ou quatro dias, ocasionalmente mesmo por períodos mais longos, a título, não e capricho, mas de experiência. Então, Lucílio, podes crer que terás a satisfação de ver como matas a fome com dois asses, de compreender que, para viver em segurança, não precisamos da fortuna para nada! Mesmo quando hostil, a fortuna não nos nega o que é estritamente necessário. Procedendo assim, de resto, não há razão para pensares que fazes uma grande coisa ( fazes apenas o mesmo que muitos milhares de escravos, que muitos milhares de pobres): apenas te dá direito a gabares-te o fato de não o fazeres por coação, o fato de te ser fácil suportar para sempre aquilo que experimentaste ocasionalmente, Ternemo-nos esgrimindo contra o poste: para a fortuna nos não encontrar impreparados, façamos com que a pobreza se nos torne familiar. Seremos ricos com muito tranquilidade se soubermos que não custa nada ser pobre! O grande mestre do prazer que foi Epicuro tinha alguns dias fixos em que nunca comia à sua vontade, para observar se algum detrimento daí resultava ao completo e consumado prazer, até que ponto tal detrimento se fazia sentir, e também para ver se merecia grandemente a pena eliminá-lo. Pelo menos é o que ele diz na carta que escreveu a Polieano datada do arcontado de Carino; gaba-se mesmo que pode alimentar-se por menos de um asse, enquanto Medrodoro, ainda num estado não tão avançado, necessita de um asse inteiro. Julgas que este tipo de alimentação produz só saciedade? Produz também prazer, não um prazer ligeiro e fugaz que continuamente se tem de espevitar, mas antes um prazer constante e fixo. Não que seja agradável viver de água, de polenta, de uma migalha de pão de centeio; mas é um prazer supremo conseguir sentir prazer em tais alimentos e atingir assim um estado ao abrigo de toda e qualquer injustiça da fortuna. Na prisão é mais abundante a comida; o carrasco alimenta com menos parcimônia os condenados à pena capital. Vê então quanta grandeza de alma há em sujeitar-se voluntariamente a uma alimentação tão parca que mesmo os condenados à morte não estão a ela reduzidos! Tal atitude equivale a despojar a fortuna das suas armas! Começa, pois, amigo Lucílio, a imitar os hábitos destes filósofos, e fixa alguns dias em que renuncies aos teus bens e te habitues a viver o mínimo indispensável. Começa a manter relações com a pobreza:

não te esquives, meu hóspede, a desprezar a riqueza, mostra-te digno de um deus!

Nenhum outro homem é digno de um deus senão aquele que desprezou a riqueza. Não que eu te proíba a sua posse, o que pretento é que a possuas sem ansiedade; e isto apenas o conseguirás se te convenceres que podes viver feliz sem ela, se a olhares como coisa que a todo o momento pode desaparecer!

Mas já é tempo de começar a dobrar esta carta. “Primeiro” – dizes tu – “paga o que deves”. Vou remeter-te para Epicuro, e ele que te faça o pagamento! “Uma cólera desmesurada gera a loucura”. É importante nos darmos conta até que ponto isto é verdade: todos temos escravos, todos temos inimigos. Todas as pessoas são suscetíveis de arder ao fogo desta paixão, que tanto pode nascer do amor como do ódio, e que não menos ocorre em situações sérias do que entre jogos e brincadeiras. Não interessa sequer a importância do motivo que a gera, mas sim em que tipo de caráter ela se produz. Do mesmo modo não importa se um fogo é grande, mas sim em que matéria ele pega. Construções extremamente sólidas podem permanecer incólumes, enquanto matérias secas e inflamáveis fazem uma faísca transformar-se em incêndio. É assim mesmo, caro Lucílio: o resultado duma cólera extrema é a insânia, e por isso já que evitar a cólera, não tanto por obediência à moderação, como para conservar a sanidade mental!

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 17

 

Se és sábio, melhor, se quiseres ser sábio, deixa-te de fantasias e aplica as tuas forças a fim de atingirem quanto antes a perfeição espiritual. Se algo te impede de avançar, liberta-te, corta o mal pela raiz. “O que me impede” – dizes tu – “é o patrimônio familiar; quero dispor as coisas de modo que possa viver do rendimento, sem que a pobreza me seja um fardo, ou eu me torne um fardo para alguém”. Ao falares assim pareces-me não dar conta de todos os recursos à disposição do bem em que estás pensando. Quero dizer, tu percebes o ponto essencial – a suprema utilidade da filosofia -, mas ainda não distingues com suficiente clareza os pontos de pormenor; ainda não sabes quanto ela nos pode ajudar em qualquer altura e, para usar os termos de Cícero, “corre em nosso auxílio” nas situações mais graves, como de resto o faz mesmo em situações banais. Faz o que te digo, pede conselho à filosofia, e ela te convencerá a não te importares com as contas! É esse então o teu problema, é por isso que adias a tua formação:  para não teres de recear a pobreza! E não será a pobreza desejável? Muitos há a quem  a riqueza impediu de dedicar-se à filosofia. A pobreza não é obstáculo, não é motivo de angústias. O pobre, quando ouve os clarins soarem, sabe que o caso lhe não respeitar, quando ouve gritar por água, procura o meio de escapar ao fogo, sem cuidar dos objetos a salvar; se tem de viajar por mar, não provoca bulício no porto nem faz com que a escolta dum único viajante encha de estrépito o cais; não tem à sua volta uma multidão de escravos para cujo sustento seja preciso recorrer à fertilidade de regiões longínquas. Não tem problema sustentar meia-dúzia de estômagos de hábitos saudáveis e sem outra ambição senão serem saciados. A fome contenta-se com pouco, os paladares requintados é que têm grandes exigências. A pobreza limita-se a satisfazer as necessidades mais prementes: para que deverás tu recusá-la como companheira, se até os ricos de bom senso lhe adotam os hábitos? Se quiserem estar livre para cuidares da alma deverás ser pobre, os faze vida de pobre. O estudo da filosofia não dará fruto se não adotares uma vida frugal; ora a frugalidade não passa de pobreza voluntária. Deixa-te, portanto, de pretextos: “Ainda não tenho o rendimento suficiente; quando o obtiver, dedicar-me-ei inteiramente à filosofia”. Ora é precisamente a filosofia que tu deves obter antes de mais nada, em vez de a adiares, de a deixares para o fim, é por ela que tens de começar. “Quero arranjar primeiro de meios de que viver”. O que deves é aprende a “arranjar-te”a ti mesmo: se algo te impede de viver bem, nada te pode impedir de morrer bem. Não já qualquer razão para que a pobreza, ou mesmo a indigência, nos afaste da filosofia. Para obtermos os seus benefícios devemos suportar até a fome! Quantas cidades cercadas não a aguentaram, sem esperanças de outras recompensa para o seu sofrimento para além de evitar sujeitar-se ao arbítrio dos vencedores? A recompensa que te promete a filosofia é de longe superior: a liberdade permanente, a ausência de receio quer ante os homens, que ante os deuses. Para alcançar tal recompensa não achas que vale a pena suportar até a fome? Houve exércitos que experimentaram a mais completa carência, vivendo de raízes, matando a fome com coisas que só até o mencioná-las repugna, e aguentaram tudo para defender um reino – bem podes espantar-te – estrangeiro! Para libertar a alma das paixões haverá quem hesite suportar a pobreza? Não há qualquer aquisição prévia a fazer: pode chegar-se à filosofia mesmo sem viático! Pois quê, depois de teres tudo o mais é que pretendes adquirir a sabedoria? Ela será apenas mais um objeto na sua vida, será, por assim dizer, um mero acessório? Ora bem: se tu já possuis alguma coisa começa a filosofar ( doutro modo como saberás se as tuas posses não são já demasiadas?); se nada possuis, procura a filosofia antes de mais nada. “Mas faltar-me-ão recursos indispensáveis”. Para começar, não poderá faltar-te recursos, porque as exigências naturais são mínimas e o sábio adapta-se ao que é natural. Se se vir reduzido às mais extremas carências, nesse caso abandonará a vida e deixará de ser um fardo para si próprios. Se dispuser dos recursos mínimos indispensáveis à conservação da vida, usará esses recursos e, sem se preocupar nem angustiar para além do indispensável, dará o “quanto baste” ao estômago e aos músculos; observando as fadigas dos ricaços, a agitação sem freio da corrida às riquezas, o sábio, tranquilo e contente, rir-se-á, dizendo: “Para quê adiares a tua própria formação? Estás à espera de receberes juros, de tirares lucro de alguma operação comercial, de seres contemplado no testamento dum velho rico, quando podes tornar-se rico instantaneamente? A sabedoria põe a riqueza à tua mão: ao mostrar que é supérflua, está como que a oferecer-ta!”. Mas estas considerações convirão melhor a outros; tu estás mais perto da gente abastada. Se mudares de época, serás rico em excesso, em todas as épocas uma só coisa permanece idêntica – aquilo que é bastante.

Já podia terminar aqui esta carta se não tivesse criado em ti certos maus hábitos! Aos reis Partos, ninguém os pode ir saudar sem levar uma oferenda; a ti, não posso dizer adeus sem um presente! … Pois bem, vou saldar a dívida com um dito de Epicuro:

Conquistar riqueza tem sido para muitos não o fim, mas apenas a troca da miséria.

Não é de admirar! O vício não estás nas coisas, está na própria alma. O mesmo defeito que nos faz achar insuportável a pobreza, faz com que achemos a riqueza insuportável! Podes deitar um enfermo num leito de madeira ou num leito de outo, não há alteração, pois para onde quer que o leves ele levará consigo a sua enfermidade; do mesmo modo nada se altera se uma alma doente viver na riqueza ou na pobreza: o seu vício segui-la-á sempre.

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 16

Tenho a certeza, Lucílio, que é para ti uma verdade evidente que ninguém pode alcançar a vida, já não digo feliz, mas nem sequer aceitável sem praticar o estudo da filosofia; além disso, uma vida feliz é produto de uma sabedoria totalmente realizada, ao passo que para ter uma vida aceitável basta a iniciação filosófica. Uma verdade evidente, todavia, deve ser confirmada e interiorizada bem no íntimo através da meditação quotidiana: é mais trabalhoso, de fato, manter firmes os nossos propósitos do que fazer propósitos honestos. É imprescindível persistir, é preciso robustecer num esforço permanente as nossas ideias se queremos que se transforme em sabedoria o que apenas era boa vontade.

Por esta razão não precisas de gastar comigo tantas palavras nem de fazer tão longas profissões de fé: eu sei que tu já progrediste bastante. Sei bem de que fonte nascem as tuas palavras, que nem são fingidas nem exageradas. Direi, contudo, o que eu penso: espero muito de ti mas não confio ainda totalmente. Aliás, quero que tu faças o mesmo comigo, ou seja, que não acredites no que te digo com excessiva prontidão. Observa-te a ti mesmo, analisa-te de vários ângulos, estuda-te. Acima de tudo verifica se progrediste no estudo da filosofia ou no teu próprio modo de vida. A filosofia não é uma habilidade para exibir em público, não se destina a servir de espetáculo; a filosofia não consiste em palavras, mas em ações. O seu fim não consiste em nos fazer passar o tempo com alguma distração, nem em libertar o ócio do tédio. O objetivo da filosofia consiste em ar forma e estrutura à nossa alma, em ensinar-nos um rumo na vida, em orientar os nossos atos, em apontar-nos o que devemos fazer ou pôr de lado , em sentar-se ao leme e fizer a rota de quem flutua à deriva entre escolhos. Sem ela ninguém pode viver sem temos, ninguém pode viver em segurança. A toda a hora nos vemos em inúmeras situações em que carecemos de um conselho: pois é a filosofia que no-lo pode dar. Haverá quem diga: “De que me serve a filosofia se existe o destino? De que me serve ela se há um deus que tudo dirige? De que me serve ela se tudo obedece ao acaso? De fato, tão impossível é alterar o que está predeterminado como tomar providências em relação ao que é incerto, pois ou as minhas decisões já foram antecipadas por um deus que me indicou como agir, ou então é a fortuna que nada deixa entregue ao meu arbítrio”.

Qualquer  que seja, meu caro Lucílio, o valor destes argumentos, e mesmo que todos sejam válidos, devemos praticar a filosofia. Quer nos determine a lei inexorável do destino, quer algum deus moderador do universo ordene todos os acontecimentos, quer seja o acaso que, desordenadamente, empurre os baldões o curso da vida humana, a filosofia deverá proteger-nos. Ela nos incitará a a obedecer  espontaneamente á divindade, a resistir a pé firme à fortuna; ela nos ensinará a seguir a divindade, ou suportar o acaso. Mas não é agora oportuno começar a discutir os limites do nosso arbítrio no caso de haver uma providência ordenadora, de o curso do destino nos arrastar manietados, ou de predominarem as ocorrências súbitas e casuais. Agora regresso ao meu ponto de partida: aconselhar-te com todo o empenho que nunca deixes esmorecer ou esfriar o ímpeto que te vai na alma. Conserva-o, á-lhe forma, de modo a que esse ímpeto de hoje se torne configuração permanente de tua alma.

Se bem te conheço, desdo o início estás à procura do presentinho que esta carta te leva: sacode-a bem, e encontrá-lo-ás. Não te admires da minha generosidade: até agora estou sendo pródigo… de bens alheios. Mas porquê dizer “alheios”? Qualquer boa máxima, seja qual for o autor, é minha propriedade. Aqui tens, pois outra sentença de Epicuro: “Se viveres conforme a natureza, nunca serás pobre; se viveres conforme a opinião do vulgo, nunca serás rico” . As exigências da natureza são exíguas; imensas, as da opinião do vulgo. Pode acumular-se nas tuas mãos a riqueza de muitos milionários; pode a fortuna dar-te um nível econômico superior ao normal, cobrir-te de ouro, vestir-te de púrpura, elevar-te a um tal grau de luxo e requinte que caminhes sobre mármores, sem nunca veres um grão de terra; pode vir a ser-te possível calcar aos pés a riqueza, e não só possuí-la; podes ainda acrescentar estátuas, e pinturas, e tudo quanto as artes do luxo sabem produzir: tudo isto só te ensinará a desejar ainda mais. Os desejos naturais são limitados; aqueles que são gerados por falsas opiniões não conhecem limite algum, porquanto a falsidade não tem termo. Quem caminha por uma estrada chega sempre ao fim; o erro, esse não conhece medida. Afasta-te, portanto, dos vãos desejos. Quando quiseres saber se o teu desejo é de origem natural, ou se provém de falsa opinião, vê se ele pode encontrar um limite: se, por muito que obtenhas, é sempre mais o que te falta ainda obter, então podes ter a certeza de que é um desejo não natural.

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 15

Costumavam os antigos (e o uso conservou-se até meu tempo) escrever logo a seguir à epígrafe das cartas estas palavras: “Se estás de boa saúde, tanto melhor; eu estou de boa saúde.” Quanto a nós teremos antes razões para dizer: “se te aplicas à filosofia, tanto melhor” De fato é na filosofia que reside a saúde verdadeira. Sem ela, a alma estará doente e mesmo o corpo, embora dotado de grande robustez, terá somente a saúde própria dos dementes, dos frenéticos. Cultiva , portanto, em primeiro lugar, a saúde da alma, e só em segundo lugar a do corpo; esta última, aliás, não te dará grande trabalho se o teu objetivo for apenas gozar de boa saúde. A ginástica destinada a desenvolver a musculatura dos braços, do pescoço, do tórax, é uma insensatez totalmente imprópria dum homem de cultura: ainda que sejas bem sucedido na eliminação da adiposidade e no crescimento da musculatura nunca igualarás nem a força nem o peso de um boi gordo! Pensa também que quanto mais volumoso for o corpo mais entravada e menos ágil se torna a alma. Por isso mesmo, limita quanto puderes o volume do teu corpo e dá o máximo espaço à tua alma! Vários inconvenientes se oferecem a quem se preocupa em excesso com o físico: por um lado o esforço exigido pelos próprios exercícios tira-nos o fôlego e deixa-nos incapazes de atenção e da aplicação a um trabalho intelectual intenso; por outro, o excesso de alimentos limita-nos a inteligência. Como mestres de cultura física recrutam-se escravos da pior extração, homens que dividem o tempo entre o óleo e o vinho – e que consideram bem sucedido o dia se transpiraram muito e se em compensação do suor derramado ingeriram bebidas em quantidade equivalente, e tanto mais eficazes se consumidas em jejum! Beber e suar: a vida de quem sofre do estômago!

Há exercícios fáceis e breves que fatigam o corpo rapidamente e nos poupam tempo. Tais exercícios merecem sobretudo a nossa atenção: a corrida, os exercícios com halteres, os vários tipos de salto – em altura, em comprimento, o salto a que eu chamaria “à moda dos Sálios”, ou aquele outro que, em linguagem provocante, diria “o passo dos tintureiros”. Escolhe algum destes exercícios, cuja execução não é difícil. Seja qual for o teu preferido, não deixes de passar depressa do corpo para a alma: a esta, dá-lhe exercício dia e noite. O exercício físico não te exigirá grande esforço; o da alma, nem o frio ou o calor o interrompe, nem mesmo a velhice. Cultiva, por conseguinte, um bem que vai melhorando com a idade! Não te digo que estejas sempre debruçado sobre um livro ou um bloco de apontamentos; é preciso dar à alma algum descanso, de modo tal, porém, que não perca a firmeza, apenas repouse um pouco.

Andar de liteira, obriga a movimentar o corpo e não prejudica a atividade intelectual: poderás ler, ditar, conversar, ouvir, – coisa, aliás, que o caminhas a pé também não te impede de fazer. Não deverás também desprezar a educação da voz, conquanto eu te aconselhe a não a elevares gradualmente , e segundo modulações determinadas, para depois desceres ao registro grave. Pode ser também que se venha à ideia aprenderes o modo correto de marchar!? Pois nesse caso podes socorrer-te desses homens a quem a fome ensinou novos ofícios: algum dele te corrigirá o ritmo da marcha, outro observar-te-á a boca enquanto comes, enfim, a tantos pormenores estarão atentos quantos a tua paciência crédula permitir à sua audácia!

Certamente não irás exercitar a voz começando de imediato aos gritos no tom mais agudo que puderes! O que é natural é ir elevando a voz a pouco e pouco, tal como, no tribunal, os oradores começam por falar em tom de conversa até passarem aos grandes clamores; ninguém começa desde logo por implorar a benevolência dos Quirites! Assim sendo, e de acordo com a tua disposição de momento, admoesta os teus vícios ora com mais entusiasmo, ora com mais calma, conforme a orientação que a tua própria voz te aconselhar. E quando dominares a tua entoação e a pretenderes tornar mais tranquila, faz com que ela desça gradualmente, e não de chofre; conserva a um registro médio, sem aquelas bruscas alterações de tom próprio de campônios iletrados. De fato, não é para exercitar a voz que fazemos estes exercício mas para que através dela nos exercitemos nós!

Já te libertei duma preocupação de certa importância: uma pequena oferta – um dito grego- vai agora juntar-se ao benefício que já te fiz. Aqui tens um preceito notável: “A vida do insensato carece de atrativos e abunda em temores, já que está totalmente orientada para o futuro”.  Perguntas-me quem é o autor:  é o mesmo que anteriormente. O que imaginas tu que se entende por “a vida do insensato”? A vida de Baba ou de Isião? Nada disso. É da nossa vida que se trata; é de nós, que não pensamos em como é agradável não ter de pedir seja o que for, em como é sublime sentirmo-nos satisfeitos e independentes da fortuna. Pensa continuamente, Lucílio, em todos os bens que já conseguiste obter; e quando reparares naqueles que te levam vantagem, atenta igualmente em todos os que estão abaixo de ti. Se quiseres mostrar-te grato para com os deuses e para com o que a vida te deu, pensa no grande número daqueles a quem superiorizaste. Mais: que te importam os outros, se te superiorizaste a ti mesmo?! Marca um limite para lá do qual não passes, ainda que o pretendesses! Afasta duma vez por todas o desejo desses bens tão ilusórios, que até é preferível apenas desejá-los sem os obter! De resto, se neles existisse algo de concreto, eles inevitavelmente nos saciariam; o que se passa de fato é que quanto mais os saboreamos mais lhes sentimos a sede. Afastemos de nós essas miragens sedutoras: tudo aquilo que se encontra nas incertezas do futuro, por que motivo me será mais vantajoso consegui-lo da fortuna, do que eu próprio disso prescindir? E porque não prescindir? Para quê esquecer-me da fragilidade humana e pôr-me a acumular bens? Para quê penar por eles? Este dia será o meu último dia; e se acaso o não for decerto que o meu fim já não está distante?

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 14

Admito que é inata em nós a estima pelo próprio corpo, admito que temos o dever de cuidar dele. Não nego que devamos dar-lhe atenção, mas nego que devamos ser seus escravos. Será escravo de muitos quem for escravo do próprio corpo, quem temer por ele em demasia, quem tudo fizer em função dele. Devemos proceder não como quem vive no interesse do corpo, mas simplesmente como quem não pode viver sem ele. Um excessivo interesse pelo corpo inquiete-nos com temores, carrega-nos de apreensões, expõe-nos aos insultos; o bem moral torna-se desprezível para aqueles que amam em excesso o corpo. Tenhamos com ele o maior cuidado, mas na disposição de o atirar às chamas quando a razão, a dignidade, a lealdade assim o exigirem. De qualquer modo evitemos quanto possível mesmo os incômodos, e não somente os perigos, coloquemo-nos em lugar segura mas refletindo desde logo nos meios como afastar os motivos de temos. Tais motivos, se bem me lembro, são de três tipos: podemos temer a indigência, ou as doenças, ou as violências perpetradas pelos poderosos. De todos eles nada nos abala mais do que os males ocasionados pela prepotência alheia, já que ocorrem acompanhados de imenso estrépito e agitação. As calamidades naturais que referi, indigência e doença, surgem silenciosamente e não incutem terror através da vista ou do ouvido; o terceiro tipo de desgraça ocorre entre grande alarido, faz a sua aparição entre armas, chamas, cadeias e bandos de feras treinadas para rasgar aos homens as estranhas. Imagina, neste momento, o cárcere, as cruzes, os cavaletes, os ganchos, o pau que atravessa todo o corpo e acaba por sair pela boca, os carros lançados em direções opostas que despedaçam os membros, a célebre túnica revestida e entretecida de matérias inflamáveis e tudo o que mais que a crueldade foi ainda capaz de inventar. Não é, portanto, de admirar se o perigo que mais receio inspira é este, que se apresenta sob tanta variedade de formas e rodeado de aparato terrível. Tal qual como a tortura é tanto mais eficaz quanto mais instrumentos dolorosos exibir (e assim vence pela vista homens que resistiriam ao sofrimento), também daqueles receios que nos afligem e abatem o ânimo, os mais eficazes são aqueles que se fazem ver. Há outras calamidades não menos graves – por exemplo a fome, a sede, as úlceras, a febre que parece queimar as estranhas -, mas que se não vêm, que não chamam a atenção, que se não exibem, aquelas outras, ao contrário, são como as guerras violentas que nos vencem pelo seu aparato visível.

Tomemos, por isso, precauções para evitarmos ser ofensivos. Por vezes é de todo o povo que nos devemos precaver; outras vezes, quando o governo da cidade passa na sua maior parte pelo senado, são os seus membros que importa conciliar; outras, são homens que, a título pessoal, receberam do povo o poder que exercem contra o próprio povo. Tê-los a todos como amigos seria ingente tarefa; basta que os não tenhamos por inimigos. O sábio, consequentemente, não provocará as iras dos poderosos, antes as esquivará, tal como no mar procuramos esquivar as tempestades. Quando foste à Sicília tiveste de atravessar o mar. Se o piloto é temerário não cuida dos perigos do austro, o vento que agita o mar da Sicília e provoca os redemoinhos, nem se aproxima da margem à sua esquerda, antes navega por entre os turbilhões causados por Caríbdis. Um outro mais prudente inquere dos conhecedores do local o sentido das correntes ou os indícios a tirar das nuvens, e dirigirá a sua rota longe daquelas paragens tão tristemente famosas pelos seus vórtices. Idêntico método usará o sábio: evita a perniciosa companhia dos poderosos mas tomando cautela para não aparentar evitá-la; em grande parte a segurança reside em não a buscarmos de forma demasiado evidente, pois fugir de alguma coisa é o mesmo que condená-la. Há, por conseguinte, que tomar todos os cuidados para nos precavermos do vulgo. Para começar, não devemos ter ambições, competição gera conflito! Em segundo lugar não devemos possuir nada capaz de ser aliciante para um eventual salteador: não ostentes quanto possível sobre ti o que possa ser tomado como espólio! Ninguém chega a matar o seu semelhante por puro prazer de matar, ou, pelo menos, muito poucos; mais numerosos são os que o fazem por cálculo do que por ódio. Qualquer ladrão deixa em paz quem nada tem; mesmo numa estrada infestada o pobre nada tem a temer. Há seguidamente três coisas que, segundo o velho provérbio, se devem evitar: o ódio, a inveja, o desprezo. O modo de consegui-lo, só a sabedoria pode indicá-lo. É, na verdade, difícil conseguir o equilíbrio, e por isso importa ter cuidado, não vá o medo da inveja fazer-nos incorrer no desprezo ou o receio de pisar os outros parecer significar que os outros nos possam pisar. O poder de inspirar temor tem sido para muitos causa de temor! Retiremo-nos com precaução de todas as frentes: tão perigoso é ser desprezado como inspirar suspeitas. A solução é procurar refúgio na filosofia: a prática do seu estudo exerce, já não digo sobre as pessoas de bem, mas mesmo sobre as não muito más, um efeito semelhante ao das insígnias sacerdotais. A eloquência forense, ou mesmo outra modalidade de eloquência que atua sobre as massas, gera inimizades; a filosofia, arte pacífica e concentrada sobre si mesmo, não pode incorrer no desprezo, ela que, mesmo entre gente inculta, leva a palma a todas as outras artes. Nunca a perversidade ganhará tanta força, nunca se escarniçará tanto contra a virtude, que o nome da filosofia não permaneça como algo venerável e sagrado. De resto, só com tranquilidade e modéstia se pode praticar a filosofia.

Aqui objetarás tu: “Pois quê, então achas que M. Catão praticou com modéstia a filosofia, ele que se atrevei a votar contra a guerra civil? Que ousou entremeter-se entre os dois generais entregues à fúria das armas? Que enquanto uns invectivavam Pompeio e outros César, ousou condená-los a ambos?” Pode discutir-se se, numa ocasião daquelas, o sábio deveria ou não participar na vida política. Que objetivo visava Marco Catão? Já não estava em causa a liberdade, perdida de há muito. A questão era saber se o dono do Estado seria César ou Pompeio: que interessava a Catão essa disputa? Nenhum dos dois partidos era o seu! Escolhia-se um ditador: que lhe importava a ele qual seria o vencedor? Era possível que viesse a vencer o melhor, mas seria impossível que o pior não fosse o vitorioso! Mas estou me referindo aos últimos tempos de Catão. Quando aos anos precedentes, em que o Estado era disputado pela violência, também não era próprios para aceitar a participação do sábio. Que outra coisa fez Catão senão vociferar palavras que ninguém ouvia, nesses dias em que ora era levado pelas mãos da populaça e, exposto aos seus escravos, era arrastado à força para fora do foro, ou conduzido do senado até ao carcere?

Posteriormente havemos de ver se o sábio deve ou não dar a sua colaboração ao Estado. Por agora chamo a tua atenção para aqueles estoicos que, vivendo à margem da política, se dedicaram ao estudo da condução da vida e do estabelecimento dos direitos humanos sem incorrerem ao desagrado dos poderosos. O sábio não deve perturbas os costumes do vulgo nem levar uma vida estranha de molde a atrair sobre si as atenções. “Queres dizer que, usando esse sistema, ele estará sempre em segurança?” Não te posso garantir isso, tal como não posso garantir que uma vida regrada implique necessariamente uma excelente saúde. Por vezes um navio pode afundar-se no porto: mas o que pensas tu não lhe sucederia no mar alto? A quantos perigos não ficaria mais exposto um homem de múltiplas atividades e empreendimentos se o próprio ócio não garante a segurança? Ocasionalmente são vitimados inocentes (quem o nega?), mas é mais frequente que o sejam culpados. Um esgrimista é atingido sob a armadura: tal não diminui a sua habilidade. Além disso o sábio pode responsabilizar-se pelas suas decisões, não pelo sucesso das mesmas. Se o início depende de nós, o resultado depende da fortuna, sem que por isso eu lhe confira direito a julgar-me. “Mas assim poderás sofrer vexames, ou graves contrariedades.” Um salteador pode matar-me; condenar-me, isso não!

Neste momento entendes a mão para receber o tributo diário. Vou encher-te as mãos de ouro e já que falei em ouro aprende a maneira de tirares dele o mais completo proveito. “Aquele que melhor goza da riqueza é o que menos necessita da riqueza.” “Qual o autor?” – perguntas. Para veres até que ponto sou tolerante decidi citar-te autores alheios: a frase é de Epicuro, ou de Metrodoro, ou de algum outro pensador lá dessa seita. Mas que interesse tem o nome do autor se ele falou para benefício de todos? Quem necessita de riqueza está em ânsias por ela; ora ninguém goza um bem que é fonte de preocupações. Procura sempre acrescentar-lhe qualquer coisa, e enquanto pensa em aumentá-la, esquece-se de tirar dela partido. Confere as contas, gasta as lages do foro, compulsa os registros dos juros: em vez do dono dos bens, torna-se guarda-livros!

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 13

Sei que tens muita força de ânimo. Mesmo antes de começares a aprender os nossos preceitos, tão salutares e tão capazes de nos fazerem afrontar vitoriosamente as situações mais duras, já te comprazias em fazer face à fortuna. Muito mais animoso estás agora depois que iniciaste com ela a luta corpo a corpo e experimentaste as tuas próprias forças; na realidade, apenas podemos confiar na nossa força quando aqui e ali deparamos com várias dificuldades, sobretudo quando uma vez por outra nos atingem muito de perto. É assim que se vê até onde chega a verdadeira coragem, aquela que nunca abdicará do seu livre arbítrio; tal situação é a verdadeira pedra de toque do nosso ânimo. Um atleta que nunca foi ferido é incapaz de afrontar o combate de ânimo alto. Só aquele que viu correr o próprio sangue, que sentiu os dentes rangerem sob os golpes, que, lançado por terra, suportou sobre o corpo o peso do adversário sem, embora abatido, nunca deixar abater o ânimo, só aquele que se ergue com mais energia de cada vez que é derrubado pode descer à arena com esperança de vencer. Prosseguindo com este símile, direi que já várias vezes a fortuna te deitou ao chão sem que te confessasses vencido; pelo contrário, ergueste-te de novo e retomaste a luta com energia dobrada. A virtude autêntica ganha novas forças de cada vez que sofre um golpe.

Se estás de acordo, contudo, dar-te-ei conselhos que te ajudarão a reforçar o teu vigor. Mais numerosos são, Lucílio, os nossos temores que as nossas verdadeiras aflições, e mais frequentemente nos angustia a nossa imaginação do que a realidade. Não te estou falando em linguagem de estóico, mas sim em linguagem menos rigorosa. O que nós, estóicos, de fato afirmamos é que tudo o que nos suscita murmúrios e suspiros não tem a mínima importância e só merece desprezo. Deixemos, portanto, as grandes frases, que, todavia, – ó deuses!, – são bem verdadeiras. Dar-te-ei somente este preceito: não sejas desgraçado antes de tempo, pois o que tu temes como coisa iminente talvez nunca venha a suceder; pelo menos, é certo que ainda não sucedeu! Certas coisas angustiam-nos mais do que há razão para tal; outras angustiam-nos antes que haja razão; outras angustiam-nos sem a mínima razão. Isto é, ou exageramos o nosso sofrimento, ou o sentimos por antecipação, ou apenas o imaginamos!

Este ponto é controverso e sujeito a discussão: discutamo-lo desde já. Aquilo que eu considero sem importância poderás tu afirmar ser extremamente doloroso: sei bem que há homens capazes de rir sob o chicote enquanto outros gemem a uma simples bofetada. Veremos mais tarde se estas situações se impõem devido à sua gravidade intrínseca ou se o fazem por causa da nossa debilidade. Por agora toma atenção a este conselho. Quando tiveres à tua volta pessoas empenhadas em persuadir-te de que és um desgraçado pensa bem, não nas palavras que ouves, mas sim naquilo que tu próprio sentes; analisa a tua capacidade de resistência e, pois és o melhor conhecedor de ti mesmo; interroga-te: “Qual a razão por que eles me lamentam? Por que motivo estremecem, porque receiam que os contagia, como se uma desgraça se pudesse transmitir? O que me aflige é um mal real, ou é antes, somente, um “mal de opinião”?” Pergunta a ti mesmo: “será que sofro e me aflijo sem motivo, que imagino um mal onde não existe?

Estou a ouvir a tua pergunta: “Mas como hei de saber se o que me atormenta é imaginário ou é real?” Aqui tens a receita! Os nossos tormentos existem ou no presente, ou no futuro, ou em ambos. Sobre o presente é fácil ajuizar. O teu corpo está são e escorreito, não foste vítima de qualquer violência física: pois amanhã logo se verá o que sucede, por hoje não há qualquer problema. “Mas há de haver!” – dirás tu. Ora repara se podemos tomar como argumentos válidos os males futuros! O pânico que nos toma apenas provém de suspeitas, de ilusões. É como na guerra: um boato basta para dar como perdida a batalha; um mero boato faz dum homem um vencido! É assim mesmo, amigo Lucílio: aceitamos de chofre a opinião vulgar. Não observamos nem analisamos criticamente as causas dos nossos temores; enchemo-nos de medo e largamos a fugir como aqueles soldados que saem do acampamento por verem ao longe a poeira levantada por um rebanho, como aqueles a quem um boato anônimo enche de pânico. As angústias ilusórias são mesmo mais perturbadores, não sei porquê! As autênticas ainda mantêm certos limites; as incertas, porém, dão toda a margem às conjecturas e fazem perder o norte aos ânimos medrosos. Não há tipo de terror tão funesto, tão incontrolável como o pânico; se o medo faz perder a razão, o pânico gera a completa loucura. Analisemos, portanto, a situação com o máximo cuidado. É natural que no futuro nos suceda um mal qualquer: o fato é que de momento ainda não existe. E quanto coisa não sucede sem nós esperarmos! Quanta coisa nós esperamos que nunca sucede! Mesmo que seja certo um mal futuro, para quê começar a sofrer antecipadamente? Logo sofrerás quando ele chegar; por agora, pensa em coisas mais agradáveis. Assim irás aproveitando o teu tempo: já é uma vantagem! Muitas circunstâncias podem surgir que suspendam, eliminem ou desviem sobre outro um perigo próximo, ou mesmo já iminente. Um incêndio pode permitir-nos a fuga; um edifício que tomba em ruínas pode depositar-nos no chão, ilesos; uma espada prestes a degolar-nos pode ser desviada; e há quem tenha sobrevivido ao carrasco que lhe fora designado. A adversidade também tem a sua inconsistência. Talvez nos atinja, ou talvez não; entretanto está longe: pensemos em coisas mais alegres!

Frequentemente, sem que ocorra qualquer sinal anunciador de algum mal futuro, o nosso espírito cria ideias falsas. É uma palavra ambígua que se interpreta nos sentido mais desfavorável; é uma ofensa, mais grave que na realidade é, que se atribui a alguém, pensando-se não até que ponto esse alguém está irado, mas sim o que ele poderá fazer se estiver irado! A vida perde qualquer sentido, a desgraça não conhecerá qualquer limite se nos pusermos a recear tudo quanto pode acontecer. Ajude-te neste ponto a tua capacidade de discernimento, e afasta para longe, com força de ânimo, mesmo um medo motivado. Se o não conseguires, então combate um vício com outro vício, e contrabalança o medo com a esperança. Por muito certos que sejam os nossos temores, mais certo ainda é que um dia o que tememos há de cessar, tal como o que esperamos nos virá a decepcionar. Pondera, portanto, os motivos de esperança e de medo, e sempre que as coisas te apareçam todas como ambíguas, age pelo melhor e acredita no que preferires. Ainda que o medo disponhas de mais argumentos, mesmo assim toma de preferência este partido: não te deixes perturbar, pensa imediatamente que a maior parte dos homens, sem que qualquer mal os aflija nem os venha a atingir como coisa inevitável, se deixam ir à deriva guiados pelas suas paixões. Ninguém resiste ao próprio impulso que tomou, ninguém sabe adequar o seu medo à realidade. Ninguém sabe dizer que o medo é mau conselheiro, que gera falsas ideias, ou acredita nelas. Deixamo-nos guiar ao sabor do vento; receamos o ambíguo como se fosse indiscutível; não agimos com conta, peso e medida, uma simples inquietação logo se transforma em terror!

Até sinto vergonha de usar contigo esta linguagem e de te confortar com conselhos tão banais. Um homem vulgar dirá:  “Talvez esse mal não ocorra!” Tu, porém, deves dizer:  “E se ocorrer, qual é o problema? Veremos qual de nós se deixará vencer! Talvez um mal venha em meu benefício, talvez uma morte assim enobreça a minha vida.” Foi a cicuta que deu grandeza a Sócrates! Tira Catão o gládio com que assegurou a sua liberdade, e tirar-lhe-ás grande parte da sua glória! Já estou, porém, a exortar-te há demasiado tempo, quando tu necessitas mais de conselhos práticos que de exortações. Não te estou conduzindo por uma via contrária à tua natureza: tu nasceste dotado para este tipo de filosofia. Mais uma razão para acrescentares e ilustrares as boas qualidades que já são tuas.

Mas é tempo de terminar esta carta. Só falta imprimir nela o sinete, isto é, citar alguma máxima importante sobre a qual tu medites.

Entre outros defeitos, a insensatez tem ainda mais este: está sempre no início da vida.” Pondera no que significa esta frase, Lucílio, meu amigo caro entre todos! Verás como é repugnante a inconstância dos homens que todos os dias constroem novos fundamentos para a sua vida, e que mesmo à beira da morte concebem novas esperanças. Observa-os um por um: encontrarás alguns velhos que, com o máximo empenho, enveredam pela intriga política, pelas grandes expedições pela vida dos negócios. Que há de mais repugnante do que um velho iniciando uma nova vida? Não acrescentaria o nome do autor desta frase se não se desse o fato de ela ser pouco conhecida e não pertencer ao número das máximas divulgadas de Epicuro que eu tenho permitido citar e adotar como minhas!

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 1, CARTA 12

Para onde quer que me vire, vejo indícios da minha velhice. Tinha ido à minha quinta nos arredores e queixava-me das despesas a fazer com uma casa em ruínas. O feitor diz-me que o mal não está em falta de cuidados seus, simplesmente a casa é velha. Ora esta casa cresceu entre as minhas mãos: como não estarei eu, se tão podres estão estas pedras da minha idade? Irritado, aproveito a primeira ocasião para me zangar com o homem. “Parece” – digo-lhe eu –  “que estes plátanos não são cuidados. Não têm folhas nenhumas! Olha como os ramos estão nodosos e ressequidos, como os troncos estão macilentos e sujo! Isto não aconteceria se as árvores fossem escavadas e regadas!”. O homem jura pelo meu Génio que faz tudo o que é preciso, que toma todos os cuidados necessários: elas é que já são velhotas! Aqui entre nós, fora eu que as plantara, eu que vira brotar as suas primeiras folhas.

Virei-me para a porta. “Quem é este?” – perguntei. “Este velho decrépito que, com toda a razão, puseram junto da porta? Onde foste desencantar este indivíduo?” Que ideia foi essa de ir buscar um morto que não é nosso?” Diz-me o velho:  “Então não me conheces? Eu sou Felicião, a quem tu costumavas oferecer bonecos, sou o filho do teu feitor Filosito, o teu companheiro preferido”. “Belo” – digo eu – “este está doido; catraio, e ainda por cima armado em meu companheiro preferido! Até está correto; já lhe estão caindo todos os dentes!…”

Fico em dívida com a minha quinta: para onde quer que me virava fazia-me dar conta da minha velhice. Pois abracemo-la, apreciemo-la: se a soubermos usar, a velhice é uma fonte de prazer. Os frutos tornam-se mais agradáveis quando estão a ficar passados; é no seu termo que mais brilha a graça da infância; aos bebedores, o último copo é que dá mais prazer, aquele que culmina e dá o último impulso à embriaguez; aquilo que cada prazer tem de mais saboroso é guardado para o fim. É extremamente agradável esta idade, já tendente para o fim embora ainda não a tombar; estar prestes a atingir a beira do telhado, acho que é situação dotada dos seus encantos; ou pelo menos, em vez de encantos, bastará a simples ausência de necessidades. Como é bom já ter cansado os nossos desejos, tê-los abandonado.

Mas é penoso” – dirás – “ter a morte diante dos olhos.

Bom, ter a morte diante dos olhos é coisa que tanto deves fazer um velho como um jovem (já que ela nos não chama por ordem de idades); além disso, não há ninguém tão velho que tenha direito a esperar um dia mais. Aliás, um dia é um degrau na vida. Toda a nossa existência consta de partes, de círculos concêntricos em que os maiores abarcam os menores: há um círculo que os abarca e rodeia a todos ( este é o que contém todo o tempo do nascimento à morte);  há outro que delimita os anos da adolescência; outro que dentro da sua órbita rodeia os anos da infância; além disso, cada ano de per si contém as subdivisões do tempo, de cuja combinação resulta a nossa vida; um mês está contido num círculo menor; um dia tem um perímetro ainda mais curto, mas mesmo ele tem um princípio e um fim, uma origem e um termo. Por isso dizia Heraclito, o filósofo que deveu a fama à sua linguagem obscura, “que qualquer dia é igual a todos os outros”.

Esta ideia foi expressa por outros, cada qual da sua maneira. Disse um que é igual em número de horas, e com razão, pois, se um dia é um espaço de tempo de vinte e quatro horas, necessariamente todos os dias são iguais entre si: a noite tem a mais o que o dia tem a menos. Disse um outro que todos os dias são iguais na sua aparência geral, porquanto nada há num enorme espaço de tempo que não possa encontrar num único dia – a luz e as trevas; no constante alternar do universo, tudo isto aparece multiplicado, mas não diferente, …1 apenas numas vezes mais curto, noutras mais dilatado. Organizemos, portanto, cada dia como se fosse o final da batalha, como se fosse o limite, o termo da nossa vida. Pacúvio, que usufruía da Síria como se lhe pertencesse de direito, depois de a si mesmo se ter celebrado com libações e sumptuosos banquetes fúnebres, fazia-se transportas do festim para o quanto entre as palmas do seus “amiguinhos”que cantavam em coro: “já viveu, já viveu!”. Todos os dias fez o seu próprio funeral. Ora o que ele fazia com a consciência pesada façamos nós com ela tranquila, e ao irmos dormir digamos, com satisfação e alegria,

vivi, cumpri o curso que a fortuna me deu.

Se a divindade nos conceder o novo dia, aceitemo-lo com alegria. O mais feliz dos homens, o dono seguro de si próprio é aquele que aguarda sem ansiedade o dia seguinte. Quem quotidianamente diz: “vivi!”, quotidianamente ficará a lucrar.

Mas já é altura de fechar esta carta. – “Olá! Então e ela vem sem me trazer um brinde?” – Não te assustes: vai levar qualquer coisa. Qualquer coisa, não: muita coisa. Que há, na verdade, de mais notável que esta fraque que eu aqui incluo para ti? “É um mal viver na necessidade, mas não há qualquer necessidade de viver na necessidade”. Como não seria assim” Em todo o lado estão patentes as vias para a liberdade: muitas, curtas e fáceis. Agradeçamos à divindade o fato de ninguém poder ser obrigado a permanecer vivo: nos é possível dar um pontapé na própria necessidade.

Dirás tu: “Essa frase é de Epicuro; para quê recorrer à propriedade alheia?” Tudo quanto é verdade, pertence-me. E vou continuar a citar-te Epicuro para que todos quantos juram pelas palavras e se interessam, não pela ideia mas pelo seu autor, fiquem sabendo que as ideias corretas são pertença de todos.


1-Lacuna no texto

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 1, CARTA 11

Estivemos conversando, o teu amigo e eu, e esta primeira conversa revelou-me o seu bom caráter, deu-me a conhecer quanto nele há de ânimo, de inteligência, mesmo já de progresso no campo filosófico. Como que me deu a provar aquilo que virá a ser no futuro, tanto mais que a conversação não fora preparada, mas correu de improviso. Enquanto procurava dominar-se, só a custo reprimiu a timidez – indício positivo, tratando-se dum jovem -, o que prova como era sentido o rubor que lhe cobriu o rosto. Creio bem que, mesmo quando obtiver a autoconfiança e se libertar de todos os seus vícios, até quando for já um sábio, nunca perderá  a tendência para corar. Nenhuma sabedoria, de fato, nos poderá libertar de certas fraquezas físicas naturais: tendências inatas, congênitas, a prática pode abrandá-las, nunca suprimi-las. Há homens, mesmo muitíssimos senhores de si, que, em presença do público, se cobrem de suor como se estivessem mortos de fadiga ou de calor; outros quando se aprestam para discursar, ficam sem força nas pernas, a outros batem os dentes, entaramela-se a língua, colam-se os lábios. Contra isto não há técnica ou prática que valha; a natureza exerce os seus direitos e mesmo às pessoas mais firmes faz sentir essa sua debilidade. Entre tais debilidades pode incluir-se a tendência para corar, capaz de ocorrer subitamente às pessoas mais austeras. É, todavia, mais frequente nos jovens, que têm o sangue mais quente e o rosto mais delicado; no entanto também se verifica nas pessoas maduras ou velhas. Há homens que nuca são tão temíveis como quando ruborizados, como se o fato significasse que perderam toda a vergonha. Sula, por exemplo, nunca era tão violento como quando o sangue lhe afluía ao rosto. Nada era mais instável do que o rosto de Pompeio o qual, quando falava em público, corava sempre. Lembro-me de ver Fabiano, ao comparecer como testemunha ante o senado, ficar todo corado, sinal de pudor que lhe convinha maravilhosamente. Ora o fato não resulta de qualquer defeito intelectual, mas sim do inesperado duma situação, que pode, senão inibir, pelo menos perturbar os inexperientes que, por natureza, tendem a ruborizar-se com facilidade. Assim como há pessoas de sangue calmo, outras há que o têm vivo e ágil, capaz de afluir rapidamente ao rosto. Tais fenômenos, conforme disse, não há sabedoria que os suprima; doutro modo a sabedoria, se pudesse erradicar todos os defeitos, teria um poder absoluto sobre a natureza. Aquilo que nos foi dado pelos condicionalismos do nascimento e da constituição física, por muito que, longamente, o espírito tenha trabalhado por aperfeiçoar-se, nunca nos abandonará, são fenômenos que não podemos impedir, nem simultaneamente, podemos provocar. Os atores de teatro, os quais devem imitar paixões, exprimir medo e ansiedade, denotar tristeza, servem-se, para imitar a vergonha, destes artifícios: baixar o rosto, mastigar as palavras, manter os olhos fixos no chão. Corar, todavia, é coisa que são incapazes de fazer! O rubor nem se impede, nem se provoca deliberadamente. Contra fenômenos desse gênero a sabedoria nada garante, nada consegue; são fenômenos naturais, ocorrem sem nós querermos, esvaem-se sem nós querermos.

Esta carta já está reclamando o brinde final. Cá vai ele! É bem útil e salutar esta máxima que pretendo ver gravado no teu espírito: “devemos eleger um homem de bem como modelo e tê-lo sempre diante dos olhos, de modo a vivermos como se ele nos observasse, a procedermos como se ele visse os nossos atos”. Este preceito, caro Lucílio, foi enunciado por Epicuro, que assim nos dota de um vigilante, de um pedagogo; e com razão, pois grande parte das faltas não seria cometida se ante os faltosos se erguesse uma testemunha. Que a nossa alma, portanto, tenha um modelo a quem venere e graças a cuja autoridade torne mais nobre mesmo o seu mais íntimo recesso. Feliz o homem que, não apenas pela sua  presença, mas até só pela sua imagem torna os outros melhores! Feliz o homem capaz de ter por alguém tanto respeito que a simples lembrança do modelo basta para lhe dar ordem e harmonia espiritual! Quem for capaz de ter por alguém um tal respeito, em breve inspirará por seu turno respeito idêntico. Escolhe, por exemplo, Catão; se este te parecer demasiado rígido, escolhe Lélio, que é homem de espírito mais maleável. Escolhe alguém cuja vida, cujas palavras, cujo rosto, enfim, espelho da própria alma, sejam do teu agrado. Contempla-o sempre, ou como teu vigilante, ou como teu modelo. Temos necessidade, repito, de alguém por cujo caráter procuremos o nosso: riscos tortos só se corrigem com a régua!

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 1, CARTA 10

É assim como te digo, não mudo de opinião: evita as multidões, evita os pequenos grupos, evita mesmo os indivíduos isolados. Não conheço ninguém com quem goste de te ver em comunicação. Repara, porém, no juízo que faço a teu respeito: ouso confiar-te a ti mesmo. Segundo corre, Crates, um discípulo daquele Estilbão de que te falei na carta anterior, viu um dia um jovem passeando sozinho e pergunto-lhe o que fazia, assim isolado. O jobem respondeu: “Falo comigo mesmo.” Então Crates retorquiu: “Tem cuidado, toma bem atenção no que fazes: olha que estás falando com um homem de mau caráter.”

Quando alguém se encontra dominado pela dor ou pelo medo, costumamos vigiá-lo, não vá ele fazer mau uso da sua solidão. Pessoas de pouco discernimento não devem ficar entregues a si próprias: ou tomam decisões erradas, ou assumem atitudes perigosas, para os outros ou para si mesmas, ou se deixam guiar por propósitos desonestos; tudo quanto o medo ou o pudor lhes escondia no ânimo vem ao de cima, provoca o atrevimento, agudiza a sensualidade, desperta a cólera. Em suma, a única vantagem da solidão – não confiar segredos, não temer denúncias – o insensato perde-a, pois é ele próprio que se trai.

Vê assim que esperanças tenho a teu respeito, ou melhor, que confiança (pois a “esperança” refere-se a um bem ainda incerto) tenho em ti, a ponto de não conhecer ninguém cuja companhia te seja preferível à tua própria. Recordo-me da energia com que pronunciavas certas máximas, e de como estas estavam cheias de vigor; como eu me congratulei desde logo, dizendo: “estas frases não vêm somente da boca, são palavras que assentam em base sólida, este homem não é um indivíduo vulgar, é sim alguém que visa a salvação”! Fala e age sempre com esse propósito, atenta a que coisa alguma te desanime. Pede aos deuses que te libertem dos teus votos de antigamente e formula outros inteiramente novos: pede-lhes sabedoria, pede-lhes impecável saúde de espírito, e só depois também a do corpo. Porque não hás-de formular tais votos com frequência? Pede sem receio à divindade que lhes dê seguimento: nada pedirás que não esteja em seu poder!

Para terminar esta carta com a pequena oferenda do costume, aqui tens esta verdade que colhi em Atenodoro: “podes estar certo de que te libertaste totalmente das paixões quando chegares ao ponto de não pedires aos deuses senão o que fores capaz de pedir em voz alta!” Mas como é grande, no geral, a insensatez dos homens que, murmurando, dirigem aos deuses as mais sórdidas preces! Calam-se se alguém as tentar ouvir mas dizem à divindade palavras que não querem que outro homem escute. Repara, portanto, se não será salutar ete preceito: vivem com os homens como se a divindade te observasse; fala com a divindade como se os homens te escutassem.