CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 29

Perguntas-me como vai e o que faz o nosso amigo Marcelino. Ele vem pouco a minha casa, pela pira e simples razão de que tem medo de ouvir a verdade. Desse perigo, aliás, está ele livre, pois eu acho que se não deve dizê-la senão a quem está disposto a ouvi-la. Por essa razão se tem posto em causa se Diógenes, bem como os outros cínicos, que falavam sem peias e admoestavam indiferentemente todos os passantes, tinham o direito de proceder assim. Qual o resultado de arengar a surdos ou a mudos, de nascença, ou por doença? “Para quê”- objetarás tu – “poupar as palavras? São de graça! Eu não posso saber se vou ser útil àquele a quem dou os meus conselhos, mas serei de certeza útil a alguém se prodigalizar conselhos a muitos. Sejamos liberais a socorrer os outros à força de tentar, é impossível que uma vez por outra não tenhamos sucesso! ”.

Meu caro Lucílio, aí está uma coisa que, em meu entender, um homem de valor não deve fazer! A proceder assim a sua autoridade como que se dilui e perde peso em faze daqueles que, sendo menos desperdiçada, poderia dar a corrigir-se. Um bom arqueiro não é o que acerta algumas vezes, mas sim o que só ocasionalmente falha; uma arte não é válida quando atinge o seu objetivo por acaso. Ora a sabedoria é uma arte: deve atingir um alvo seguro, escolher discípulos capazes de aperfeiçoamento e afastar-se dos casos desesperados, embora não de chofre sem tentar um último remédio, mesmo sem nenhuma esperança.

Eu ainda não desesperei do nosso Marcelino. É um homem que ainda pode salvar-se, desde que lhe deitemos a mão urgentemente. O perigo é ele arrastar consigo que lhe deitar a mão! Marcelino tem um espírito muito vigoroso, embora com tendência para o mal. De qualquer modo vou arriscar-me a esse perigo e atrever-me a apontar-lhe os seus defeitos. Ele procederá como de costume, recorrendo às suas pilhérias capazes de fazerem rir mesmo quem está de luto, troçará de si próprio primeiro, da nossa escola em seguida, e atalhará de imediato tudo quanto eu lhe disser. Passará em revista as escolhas filosóficas e imputará aos filósofos os subornos que recebem, as amantes, o prazer da mesa; indicar-me-á um que comete adultério, outro que frequente a ataberna, outro, a corte; apontar-me-á Aríston, o alegre filósofo que dá as suas lições de liteira, a altura melhor que escolheu para cumprir as suas obrigações…. Tanto que quando alguém pergunto a que escola pertencia, Escauro respondeu: “Peripatético é que não é, de certeza! ”. Também a esse homem notável que é Júlio Grecino, perguntaram o que pensava de Aríston. “Não posso fizer, não sei do que ele é capaz quando anda a pé! ” respondeu, como se o interrogassem sobre um essedário.

Em suma, lançar-me-á em cara esses charlatães que mais honestos seriam abandonando a filosofia do que tentando vende-la. Decidi, contudo, sujeitar-me às suas graçolas: ele far-me-á talvez rir, mas pode ser que eu o faça chorar, e se ele teimar no riso, então eu, tanto quanto é possível quando as coisas vão mal, alegrar-me-ei por ao menos lhe ter cabido em sorte um tipo de loucura bem disposta! Esta hilaridade, porém, não dura muito: repara e verás que em breve espaço de tempo as mesmas pessoas riem e entram em fúria com igual intensidade. Estou decidido a abordar Marcelino e a mostrar-lhe como ele valia tanto mais quanto menos caía no agrado de muitos. Se não conseguir eliminar-lhe os vícios, pelo menos refreá-los-ei; não cessarão, mas tornar-se-ão menos frequentes, ou até talvez cessem se criarem o hábito de ser menos frequentes. Mesmo este resultado não seria despiciendo, pois em casos de doença grave um bom período de acalmia é quase equivalente à saúde.

Enquanto eu me preparo para cuidar do nosso amigo, tu, que tens capacidade e sabes de que base partiste, e por isso compreendes qual o alvo a atingir, cai corrigindo o teu modo de ser, vai ganhando coragem, vai-te robustecendo contra os teus receios; não passes em revista todos quantos podem inspirar-te medo. Não seria estupidez ter medo da multidão num local onde só se pode passar um a um? Pois também não são muitos os que têm possibilidade de assassinar-te, ainda que muitos de tal te ameaçassem. A natureza dispôs as coisas de maneira que só uma pessoa nos poderá mata, tal como só uma nos deu a vida.

Se não fosses muito rigoroso, bem poderia isentar-me do último pagamento; mas eu não vou ser mesquinho agora que a dívida está no fim! Aí tens o que te devo. “Nunca pretendi agradar ao vulgo; daquilo que eu sei o vulgo não gosta, daquilo que o vulgo gosta não quero eu saber” Quem é o autor? Pareces pensar que eu ignoro que pessoa é o meu discípulo!… É Epicuro; mas os mesmos te dirão os mestres de todas as outras escolas, peripatéticos, acadêmicos, estóicos, cínicos. Como pode de fato agradar ao vulgo alguém a quem só a virtude agrada? Não se conquista o favor popular por processos limpos. Terás de igualar-te primeiro ao vulgo, que só te aprovará quanto te considerar um dos seus. Ora para a tua formação a opinião que tenhas sobre ti mesmo importa muito mais do que a dos outros. A amizade de pessoas dúbias só se concilia por processos dúbios. Em que te ajudará nisto a filosofia, essa arte excelsa que a tudo sobreleva? Precisamente em levar-te a querer te agradar mais a ti do que ao vulgo, a avaliar a qualidade, e não o número, das pessoas que emitem juízos sobre ti, a viver sem temor dos deuses ou dos homens, a poder vencer a adversidade ou a pôr lhe cobro. Por outro lado, se eu te vir andar famoso nas bocas do mundo, se à tua entrada, como à de histriões no palco, ressoarem vivas e palmas, se por toda a vida de mulheres e crianças te tecerem louvores, como não hei de eu lamentar-te, sabendo como sei qual a via para se obter tal favor?

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 28

Pensas que só a ti isso sucedeu; admiras-te, como se fosse um caso raro, de após uma tão grande viagem e uma tão grande variedade de locais visitados não teres conseguido dissipar essa tristeza que te pesa na alma!? Deves é mudar de alma, não de clima. Ainda que atravesses a vastidão do mar, ainda que, como diz o nosso Virgílio,

as costas, as cidades desapareçam no horizonte,

os teus vícios seguir-te-ão onde quer que tu vás. Do mesmo se queixou um dia alguém a Sócrates: “Porquê admirar-te da inutilidade das tuas viagens, ” – foi a resposta, – “se para todo o lado levas a mesma disposição? A causa que te aflige é exatamente a mesma que te leva a partir! ” De fato, em que pode ajudar a mudança de local, ou o conhecimento de novas paisagens e cidades? Toda essa agitação carece de sentido. Andares de um lado para o outo não te ajuda em nada, porque andas sempre na tua própria companhia. Tens de alijar o peso que tens na alma; antes que a tua atual disposição de espírito idêntica à da possuída de uma força anímica vida do exterior:

a Sibila corre impetuosamente, tenta expulsar do peito a força divina que o enche!

Andas daqui para ali tentando expulsar essa angústia interior, que o teu incessante deambular apenas consegue agravar. É como num navio: se a carga está imóvel pouco se faz sentir, mas se anda a rebolar de um lado para o outro ao acaso faz tom bar o barco para o lado onde exerce mais pressão. O que quer que faças redunda em teu prejuízo, esse teu contínuo movimento só te faz mal; é como fazeres andar um doente às voltas! Agora quando te tiveres libertado da angústia, nessa altura, qualquer mudança de local te será agradável: podes ir parar aos confins da terra, podes ir dar a um canto perdido na barbárie que essa terra, seja qual for, se te mostrará hospitaleira! Interessa é a disposição de espírito com que partes, e não o local a que chegas. Por isso mesmo não devemos afeiçoar-nos demasiado a nenhuma terra em especial. Temos de viver com esta convicção: não nascemos destinados a nenhum lugar particular, a nossa pátria é o mundo inteiro! Quando te tiveres convencido desta verdade, o primeiro ponto em que parares agradar-te-á de imediato. O que tu fazes agora não é viajar, mas sim andar à deriva, a saltar de um lado para o outro, quando na realidade o que tu pretendes – viver segundo a virtude – podes consegui-lo em qualquer sítio. Conheces algum local mais cheio de agitação do que o foro? Pois, se for necessário, mesmo aí se pode viver com tranquilidade. Claro que, havendo possibilidade de escolha, eu preferiria ir para longe da vista, quanto mais da vizinhança do foro! Certos climas muito rudes põem em perigo a saúde mais robusta do mesmo modo certos locais são pouco próprios para um espírito, virtuoso sim, mas ainda pouco firme, ainda em vias de aperfeiçoamento. Não concordo com aqueles que se atiram para o meio das varas e que, levando uma vida de agitação, lutam diariamente, com a maior coragem, contra as dificuldades da situação. Tal tipo de vida, o sábio pode suportá-lo, mas não o escolher; preferirá viver em paz, e não em conflito. É que pouco adianta ter alijado os próprios vícios para andar a combater os alheios. Poderá objetar-se que à volta de Sócrates se juntaram trinta tiranos e não conseguiram vergar-lhe o ânimo. Mas que importa o número dos senhores? A escravidão é só uma. E quem a tem em desprezo será sempre um homem livre, por muito grande que seja a multidão dos poderosos!

É tempo de terminar esta carta, mas primeiro tenho de pagar a portagem! “O começo da cura é a autoconsciência do erro”. Creio que Epicuro tem toda a razão de dizer isso. De fato, quem não tem consciência de errar, não pode querer emendar-se. Antes da correção deve surgir a noção do erro. Certos indivíduos há que se gabam dos seus vícios: como imaginar que pode pensar em curar-se gente que toma os próprios defeitos como virtudes? Por isso mesmo, tanto quanto possas, acusa-te, move o papel de acusador, depois o de juiz, só depois o de advogado de defesa; e uma vez por outra aplica uma pena a ti mesmo!

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 27

Quem és tu para me dar conselhos? Acaso já te aconselhaste a ti próprio, já corrigiste o teu caráter, para te poderes armar em diretor da consciência alheia? ” Objeção justa, a tua; eu, contudo, não sou tão descarado que, doente eu próprio, me aplique a dar remédio aos outros! É como companheiro de sanatório que eu falo contigo da nossa comum enfermidade e te dou parte dos meus medicamentos que eu uso. Escuta, portanto, as minhas palavras como se me estivesse ouvindo a falar com os meus botões; é como se eu te permitisse o acesso aos meus segredos e discutisse comigo mesmo na tua presença. Aqui tens o que eu repito sem cessar a mim próprio:

“Pensa na idade que tens, Séneca, e sentirás vergonha por teres as mesmas vontades e objetivos que tinhas em jovem. Já que estás próximo o dia da tua morte, vê se consegues ao menos que os teus vícios morram antes de ti. Desfaz-te desses prazeres desordenados de que só a muito custo te verás livre: tais prazeres não são mais nocivos antes do que depois de satisfeitos. Podemos não ser surpreendidos na altura do cometer um crime, mas nem por isso a angústia nos abandona. Com os prazeres ilícitos é o mesmo: depois de os satisfazermos, ficamos com o remorso. Não são prazeres constantes e duradouros; mesmo que não sejam nocivos, são pelo menos efêmeros. Procura antes um bem que seja de fato duradouro, e o único nestas condições é aquele que a alma consegue extrair de si própria. Unicamente a virtude nos proporciona uma alegria perene e inabalável. Algum obstáculo que intervenha tem tanta consistência como as nuvens que se movem abaixo do sol sem nunca poderem ocultar por completo a sua luz! ”

Quando nos será dado aceder a uma tal alegria? Se bem que não tenhamos estados parados, é hora de apressarmos o passo. Ainda resta muito Trabalho a fazer. Se desejas atingir esse objetivo, careces de muita atenção da minha parte, mas também de bastante esforço de tua. A virtude não se conquista por procuração. A mera erudição pode servir-se de auxiliares. Lembro-me ainda de um ricaço, Calvísio Sabino, de sua graça! Este homem tinha os bens de fortuna e a inteligência próprias de um liberto. Nunca vi ninguém tão exageradamente favorecido pela sorte. A sua memória era tão má que de vez em quando até esquecia os nomes de Ulisses, de Aquiles ou de Príamo, embora todos conheçam os seus nomes tão bem como nós conhecemos os nomes dos nossos pedagogos. Nenhum nomenclador senil, daqueles que já não sabem o nome às pessoas e dizem o que lhes vem à cabeça, citaria tão Troianos e aos Aqueus! Apesar disto ele queria fazer-se passar por erudito. E aqui tens o meu método que congeminou: comprou a peso de ouro uma série de escravos, um que sabia Homero de cor, outo Hesíodo, e mais nove a quem encarregou de decorar os poetas líricos. Que tais escravos lhe tivessem custado uma fortuna não é de admirar: não os encontrou assim tal qual, teve de os mandar treinar expressamente. Mal conseguiu dar por pronta esta tropa toda, desatou a massacrar os seus convidados. Os escravos sentavam-se lhe aos pés; quando queria citar alguns versos, ele pedia que lhes soprassem… mas continuamente falhava-lhe a matéria a meio de uma palavra! Então Satélio Quadrado, parasita habitual de ricaços estúpidos, e consequentemente, seu adulador (seu crítico também, pois este atributo é sempre concomitante dos dois primeiros), aconselhou-o a comprar novos escravos para acabarem a frase que ele deixava em meio! Sabino replicou que cada escravo lhe ficava por milhares e milhares de sestércios; diz-lhe o outro: “Terias gasto menos dinheiro se tivesses comprado uma biblioteca! ” O nosso homem, porém, continuou convencido de que ter em casa alguém erudito era o mesmo que ser erudito ele próprio!…

Satélio tentou também convencer Sabino a praticar luta livre, embora ele fosse um homem doente, pálido, enfezado. “Mas como é isso possível, se eu mal me aguento nas pernas? ”- dizia Sabino. “Não me venhas com essa, por favor! ” – Replicou o outro. “Então para que servem todos estes robustos escravos que tu tens? ”

Um espírito virtuoso não é coisa que se peça emprestada ou se possa comprar! E mesmo que existisse à venda, receio bem que não encontrasse comprador… O vício, esse todos os dias tem que o adquira.

Mas já é tempo de pagar-te o que devo e despedir-me. “A verdadeira riqueza consiste na pobreza capaz de prover à satisfação do que por lei da natureza necessitamos.”. Epicuro repetiu uma coisa que nunca se aprende devidamente. A certo doentes basta que se lhes indique os remédios; outros têm de ser obrigados a toma-los!

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 26

Dizia-te eu, não há muito, que já estava à vista da velhice: agora creio bem já ter deixado a velhice lá para trás de mim! À minha idade, ou pelo menos ao meu corpo, já será adequada outra designação, pois “velhice” é o nome que se dá ao período da vida em que o homem está, embora cansado, ainda não gasto de todo. Inclui-me, portanto, no número dos decrépitos já prestes a atingir o fim. Há, porém, uma coisa que te peço tomes em consideração: é que não sinto na alma as injúrias da díade, conquanto as sinta no corpo. Somente envelheceram os meus vícios, tal como o corpo auxiliar desses vícios. O meu espírito conserva-se vigoroso e mostra-se contende de já pouco ter de se ocupar com o corpo, insto é, já alijou uma grande parte do seu fardo. Mostra-se exultante, e discute comigo o problema da velhice, a qual diz ser para ele “a flor da idade”! Acreditemos nele, deixemo-lo gozar os seus bens específicos. Agora ordena-me que medite, que saiba discernir, neste meu atual estilo de vida tranquilo e modesto, a parte que cave à filosofia e aquela que cabe à idade, que observe com atenção tudo quanto já não posso e tudo quanto já não quero fazer, considerando como indesejável aquilo que já me não é possível fazer. De fato, qual o motivo de queixa, qual o prejuízo que vem de se ter acabado aquilo que, um dia ou outro, teria mesmo de acabar? Sei qual a tua objeção: “É um prejuízo enorme sentirmo-nos diminuídos, depauperados, desfeitos, para empregar o termo exato. A velhice, é um fato, não nos abala e derruba de um só golpe, nos vai corroendo, vai, cada dia que passa, roubando um pouco às nossas forças.”. Então haverá melhor forma de morrer do que nos desfazermos, natural e gradualmente, até chegarmos ao fim? Não quero dizer que um golpe súbito e uma morte repentina sejam qualquer coisa de mal; somente afirmo que ir perecendo a pouco e pouco é um modo mais suave de morrer. Eu, pelo menos, como se já estivesse próximo o momento decisivo, esse dia supremo que já de prenunciar o juízo definitivo sobre toda a minha vida, vou-me observando e dizendo a mim mesmo estas palavras: “Tudo o que até agora fiz ou disse de nada vale; não passam de fracos e falaciosos garantes da minha alma, disfarçados entre inúmeros adornos. O que eu tiver feito de útil, ficarei a deve-lo à morte. Por conseguinte, preparo-me sem receios para aquele dia em que, sem artifícios ou disfarces, hei de ajuizar sobre mim mesmo, se apenas digo grandes frases ou se as sinto, se todas as palavras corajosas que proferi contra a Fortuna foram ou não algo mais do que outros: é sempre incerta, há sempre divisão de opiniões. Não interessam os estudos realizados durante a vida: somente a morte pronunciará sobre nós o juízo definitivo. Esta é a minha opinião: as disputas filosóficas, os colóquios literários, as máximas recolhidas nos textos dos sábios, as conversas eruditas – nada disto revela a verdadeira força da alma! Até os mais medrosos são capazes de valentes discursos… O que de fato foi conseguido só se notará no momento de exalar a alma. Por mim, aceito as condições, e não tomo o juízo decisivo.” Aqui tens as palavras que digo a mim mesmo, mas toma-as como se também fossem dirigidas a ti. És mais novo do que eu, mas isso não importa: o que conta não são os anos. Não se sabe quando e onde a morte te espera; espera tu, portanto, a qualquer momento por ela!

Já estava a terminar, já a minha mão se aprontava para a fórmula final; devo, no entanto, contar as moedas e dar a esta carta o seu viático! Mesmo que eu te não diga a quem vou pedir o dinheiro emprestado, tu já calculas a que cofre vou bater…. Mas espera por mim mais um pouco e eu passarei a pagar-te do meu bolso! Entretanto o banqueiro será Epicuro, o qual nos aconselha a “meditar na morte”, ou a “atribuir a maior importância à aprendizagem da morte”, se porventura a mesma ideia se nos torna mais clara usando esta última fórmula. Talvez tu julgues supérfluo aprender uma coisa que só utilizamos uma vez! Mas por isso mesmo é que devemos meditar nela: temos sempre que estudar uma coisa que não podemos testar se já sabemos! “Medita na morte! ”: com estas palavras Epicuro manda-nos meditar na liberdade. Um homem que aprendeu a morrer esquece o que seja a servidão: está acima, melhor dizendo, está fora do alcance de todo e qualquer poder! Que lhe importam o cárcere, os guardas, as cadeias, se tem diante de si uma porta sempre aberta? Uma única cadeia nos tem manietados: o amor pela vida. Não o abafemos de todo, mas diminuamo-lo de modo a que, se as circunstâncias o exigirem, nada nos detenha ou impeça de estarmos preparados para fazer imediatamente o que, mais tarde ou mais cedo, teremos mesmo de fazer.

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 25

O tratamento adequado aos nossos dois amigos tem de usar métodos completamente diferentes. De fato, enquanto os vícios de um deles carecem de correção, os do outro exigem ser travados à força. Dir-te-ei com toda franqueza: só serei na realidade seu amigo se for violento com ele! “Ora essa!” – dirás tu. – “Pensas que podes manter sob o teu controle um discípulo de quarenta anos? Repara que já atingiu uma idade dura e intratável, insusceptível de correção. Só é possível moldar almas ainda jovens.”. Pois bem, eu ignoro se vou ser bem-sucedido, mas prefiro não obter êxito a faltar ao meu dever. De resto não devemos perder a esperança de sarar uma doença mesmo prolongada, se nos mostrarmos firmes ante os desmandos dos doentes, se os forçarmos a fazer e aguentar uma coisa contra a própria vontade. Mesmo em relação ao nosso outro amigo eu não tenho demasiadas esperanças, a não ser o fato de ele ainda corar quando comete alguma falta. Há que cultivar esse sentimento de vergonha, o qual. Enquanto permanecer na sua alma, nos dará bons motivos para ter esperança. Quanto ao nosso “veterano”, tenho de trata-lo com mais parcimônia, não vá ele desesperar de si mesmo. Nenhuma ocasião foi mais propícia para me encarregar dele do que agora que os seus vícios estão em descanso, e ele se assemelha a um homem reconvertido. A outros, este divórcio dos seus vícios pode parecer definitivo, mas eu não me convenço com palavras: sei que os vícios, de momento adormecidos mas não dominados, hão de regressar, e com juros elevados! Vou aplicar o meu tempo a tentar dominá-los, mas só depois de experimentar saberei se pode ou não conseguir algum sucesso.

Quanto a ti, continua, como até agora a mostrar-te animoso e a diminuir as tuas bagagens! Nada do que possuímos nos é estritamente necessário. Regressemos à lei da natureza, e teremos riquezas em abundância. Aquilo de que carecemos, ou é gratuito ou de baixo preço: a natureza contenta-se com pão e água! Ora ninguém é tão pobre que não possa obter estes dois bens; e quem a eles limitar os teus apetites poderá rivalizar em felicidade com o próprio Júpiter, conforme diz Epicuro. Será deste filósofo a frase que vou inserir na presente carta. Ei-la: “Procede em tudo como se Epicuro te estivesse observando! ”. É útil, sem dúvida, termos acima de nós mm mestre, alguém cuja aprovação procuremos, alguém que, por assim dizer, participe dos nossos pensamentos. De longe mais importante será viver como se estivéssemos sempre perante o olhar de algum homem de bem; eu já me darei por satisfeito se tu agires sempre como se estivesse a ser observado, uma vez que a solidão é conselheira de todos os vícios. Quando tiveres progredido a ponto de teres o maior respeito por ti próprio, então poderás dispensar o pedagogo. Por enquanto, acolhe-te à proteção de alguma autoridade: pode ser o grande Catão, ou Cipião, ou Lélio, ou outro qualquer, daqueles em cuja presença mesmo os homens mais depravados reprimiam os seus vícios. Isto enquanto estás fazendo de ti um homem em cuja presença não ouses prevaricar. Quanto tiveres atingido este nível, não ouses prevaricar. Quanto tiveres atingido este nível, quando começares a sentir respeito por ti mesmo, então eu começarei a permitir que faças aquilo que Epicuro igualmente aconselha: “Refugia-te dentro de ti próprio, em especial quando fores forçado a estar no meio da multidão.”. É bom que te tornes diferente da maioria, desde que possas refugiar-te com segurança dentro de ti mesmo. Repara no comum das pessoas: todas teriam mais proveito na companhia de alguém que não fossem elas próprias! “Refugia-te dentro de ti próprio, em especial quando fores forçado a estar no meio da multidão! ”- mas só se tu fores um homem de bem, tranquilo, moderado. Doutra maneira deves procurar refúgio na multidão e fugir de ti mesmo, escapando assim à presença íntima de um homem sem caráter.

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 24

Dizes-me que te preocupa qual será o resultado de um processo intentado contra ti por um inimigo furibundo e julgas que eu poderei persuadir-te a teres melhores pensamentos e a te deixares envalar por esperanças lisonjeiras. Mas para quê estares a sofrer antecipadamente com os teus males, que aliás se farão sentir bem depressa, e a estragares o presente com o medo do futuro? É pura estupidez, lá pelo fato de um dia teres de ser infeliz, começares a ser infeliz desde já. Mas vou procurar incutir-te calma por outra via. Se queres libertar-te de toda e qualquer angústia, imagina que sucede mesmo aquilo que receias venha a suceder, e, seja qual for esse mal, avalia bem a sua extensão e toma simultaneamente o peso aos teus receios. Depressa perceberás que o objeto do teu medo é de pouca monta, ou de curta duração. Se para ganhares coragem necessitas de exemplos, não custa muito arranjá-los: em qualquer época os há com abundância. Em qualquer período da história, seja romana seja de outras nações, depararás com homens dotados de serenidade filosófica, ou ao menos capazes de corajosos arrebatamentos. Supões que és condenado: oi mais grave que te pode suceder é seres exilado ou preso. Há algo de mais terrível do que ser torturado pelo fogo, ou sofrer uma morte violenta? Passa em revista todas as possíveis situações, evoca a imagem de todos os que já por elas passaram sem tremer. O problema não é descobrir exemplos, mas sim escolhê-los. Rutílio suportou a sua condenação fazendo notar que o que lamentava no processo não era o resultado, mas a injustiça. Metelo sujeitou-se ao exílio com coragem, Rutílio até com alegria! O primeiro concedeu à República o favor de retornar a Roma, o segundo transmitiu a sua recusa de regressar a Sula, o ditador a quem então ninguém ousava recusar o que quer que fosse. Sócrates discutia filosofia na prisão e embora alguns amigos quisessem libertá-lo ele negou-se a sair; ficou no cárcere para exemplo de que não devemos recear essas duas coisas que tanto assustam os homens: a morte e a prisão. Múcio colocou a própria mão sobre as brasas. Suportar o fogo é doloroso, e mais doloroso ainda se impomos esse tormento a nós próprios. E, no entanto, Múcio, um homem inculto, desprovido de quaisquer preceitos filosóficos que o defendessem contra a dor e a morte, dotado somente da sua energia de militar, puniu-se a si mesmo pelo fracasso da sua empresa. Ficou observando a pé firma a mão consumir-se no braseiro inimigo; e nem sequer foi ele quem a retirou, já queimada até aos ossos, foi o próprio inimigo quem afastou dele o braseiro. Na sua expedição ao equipamento etrusco Múcio podia ter sido mais afortunado, mais valente, nunca. Vê, pois, como a autêntica coragem é mais expedita a afrontar os perigos do que a crueldade o é a suscitá-los. Teve mais facilidade Porsena em perdoar a Múcio a tentativa de assassínio, do que Múcio em desculpar a si próprio o fracasso.

Sei o que vais dizer: “Essas histórias são repisadas em todas as escolas: quando daqui a pouco tratarmos o problema do desprezo pela morte, já sei que virás com a história de Catão! ”. E porque não hei de contar-te o que foi a sua última noite, passada a ler um texto de Platão com a espada à cabeceira do leito? Para a sua hora suprema Catão precavera-se com estes dois instrumentos: o primeiro garantia-lhe a vontade, o segundo a possibilidade de morrer. Tomadas todas as providências, aquelas que poderiam ser tomadas numa situação sem saída possível, Catão arranjou-se de modo a que ninguém soubesse o direito de mata-lo ou a possibilidade de salvá-lo. Desembainhando a espada, que até esse momento guardara pura de sangue humano, exclamou: “Foram infrutíferas, Fortuna, as tuas tentativas de obstar aos meus propósitos. Não combati até hoje pela minha própria liberdade, mas pela da pátria; todo o meu esforço tendeu, não a viver livre, mas a viver entre homens livres. E agora que já não há esperança para o gênero humano, Catão irá acolher-se a lugar seguro.”. Desferiu depois em si mesmo um golpe mortal; os médicos ligaram-lhe a ferida, mas Catão, perdendo sangue, perdendo as forças mas guardando a mesma energia de ânimo, mais irado já consigo do que com César, levou à feria as mãos nuas e, mais do que abrir-lhe caminho, expulsou de si a sua alma nobilíssima, que tanto desprezo sentia por toda e qualquer forma de poder!

Não estou a coligir exemplos apenas para aguçar o engenho, mas para que te sirvam de exortação contra aquele que imaginamos ser o mais terrível dos males. As minhas exortações tornar-se-ão mais fáceis se te demonstrar que não são apenas os heróis a desprezar o momento de exaltar o último suspiro, mas que até mesmo homens pusilânimes são capazes em certas situações de se elevar ao nível dos mais valorosos no momento decisivo. Foi este o caso de Cipião, sogro de Gneu Pompeio. Arrastado para a costa de África por ventos contrários, ao ver o seu navio ocupado pelos inimigos, trespassou-se com a espada, e, quando aqueles lhe perguntaram o que era feito do general, respondeu: “O general está são e salvo! ”.: que forma de morrer haveria mais digna de um general, e de um general das tropas de Catão? Não vou remeter-te para os livros de história, não vou enumerar todos os homens, e muitos são, que através dos tempos têm demonstrado desprezo pela morte. Considera apenas a nossa época, de cuja moleza e volúpia amargamente nos queixamos. Em todas as ordens sociais, em todos os graus de fortuna, em todos os níveis etários te saltarão à vista muitos homens que puseram fim aos seus males com a morte. Acredita no que te digo, Lucílio: não só não devemos recear a morte, como a ela devemos o termo dos nossos receios! Ouve, pois, com calma as ameaças desse teu inimigo! E embora a consciência te diga que deves estar confiante, como no processo intervêm muitos fatores de ordem externa, ainda que esperes te seja feita justiça, prepara-te para a hipótese de vires a ser vítima da maior injustiça! Acima de tudo nunca te esqueças disto: não dês a menor importância ao aparato exterior, analisa com cuidado todos os fatores em jogo, e verás que, na tua situação, a única coisa temível é o teu próprio temor. Conosco passa-se o mesmo fenômeno habitual nas crianças (o que bem comprova que nós não passamos de crianças grandes): elas assustam-se quando veem mascaradas as pessoas a quem amam, a quem estão habituadas, com quem brincam. Pois o que nós temos a fazer é tirar a máscara, não só às pessoas, como às coisas, e restituir a cada uma o seu rosto próprio! Para que essa exibição de gládios e fogueiras, essa multidão de carrascos que se agita a tua volta? Despoja-te desse aparato sob o qual te ocultas para assustar os insensatos: tu és apenas a morte, aquela morte que ainda há pouco o meu escravo, a minha escrava afrontaram sem temor! Para que essa outra exibição, em grande estilo, de chibatas e mesas de tortura? Para que todo esse cortejo de instrumentos especializados cada um esquartejar a sua parte do corpo, todas essas máquinas destinadas a reduzir um homem a pedaços? Afasta todo esse aparato visual que nos deixa mudos de medo, põe termo aos gemidos e aos ais, aos agudos gritos de dor suscitados pelo tormento: tu és apenas a dor, aquela mesma dor que o gotoso aguenta sem gritar, que o doente do estômago suporta enquanto como os mais delicados manjares, que a jovem parturiente sofre enquanto dá à luz! Se te posso suportar, és uma dor ligeira, se não posso, serás uma dor breve!

Medita continuamente nestas máximas, que aliás tem ouvido com frequência, e que tu próprios muitas vezes tem repetido. Deves, porém, comprovar pela experiência a veracidade do que tens ouvido e do que tu mesmo tens dito. A pior crítica que nos podem fazer é a acusação de repetirmos as sentenças da filosofia sem pormos em prática os seus ensinamentos. Não vais dizer-me que só agora reparaste que és um ser sujeita à morte, ao exílio ou à dor?! Estamos sujeitos a tudo isso desde o nascimento: pensemos, portanto, que nos vai mesmo suceder tudo quanto é susceptível de nos suceder. Estou certo de que já tens seguido este meu conselho. Não quero é deixar de exortar-te agora a que não deixes a tua angústia presente tomar-te conta do espírito, pois de contrário este acobardar-se-á e mostrar-se-á pouco vigoroso na altura decisiva. Desvia a atenção desse problema individual para os problemas comuns a todos. Repete a ti próprio que tens um corpo mortal e frágil, exposto a mil e uma dores, que não apenas as ocasionadas por agressões ou prepotências dos poderosos: os próprios prazeres degeneram em sofrimento, os banquetes são causa de indigestões, a embriaguez provoca o entorpecimento e o descontrole dos nervos, a sensualidade é origem de deformações nos pés, nas mãos, em todas as articulações. Vou empobrecer: serão mais numerosos os meus semelhantes. Vou ser exilado: imaginar-me-ei, nascido no local do meu exílio. Vou ser amarrado: e então, será que agora tenho os movimentos livres, eu, que a natureza criou amarrado a este peso que é o meu próprio corpo? Vou morrer: quer dizer, vou deixar de poder estar doente, de poder ser amarrado, vou deixar de estar sujeito à morte!

Não sou tão tolo que me vá pôr a repetir o refrão dos epicuristas: que é infundado o medo dos infernos, que não há roda alguma sobre a qual Ixíon seja arrastado, que não há qualquer monte por onde Sísifo empurre com os ombros o rochedo, que não há ninguém cujas vísceras possam diariamente renascer e ser comidas! Ninguém é infantil ao ponto de ter medo de Cérbero, das trevas, ou de fantasmas com túnicas cobrindo esqueletos descarnados. A morte, ou nos consome totalmente, privados do peso do corpo, resta-nos a melhor parte de nós mesmos. Se somos totalmente consumidos, então não resta mais nada, tanto a parte boa quanto a parte má são-nos retiradas igualmente. Dá-me licença que cite neste ponto um verso teu, mas sem deixar primeiro de lembrar-te que deves pensar que o escreveste tanto para uso dos outros como para uso próprio. É indecente dizer uma coisa e pensar outra; muito mais indecente será escrever lima coisa em que se não acredita! Lembro-me que um dia tu desenvolveste esta ideia, que nós, homens, não caímos na morte de repente, antes avançamos gradualmente para ela. Morremos diariamente já que diariamente ficamos privados de uma parte da vida; por isso mesmo, à medida que nós crescemos a nossa vida vai decrescendo. Começamos por perder a infância, depois a adolescência, depois a juventude. Todo o tempo que decorreu até ontem é tempo irrecuperável; o próprio dia em que estamos hoje, compartilhamo-lo com a morte. Não é a última gota que esvazia a clepsidra, mas toda a água que anteriormente foi escorrendo; do mesmo modo não é a hora final em que deixamos de existir a única que constitui a morte, mas sim a única que a consuma. Atingimos a morte nessa hora, mas já de há muito caminhávamos para ela. Ao descreveres esta situação com a tua eloquência habitual, sempre notável, as nunca tão sublime como quando pões a palavra a serviço da grande verdade, escreveste este verso:

a morte ver gradualmente, a que nos leva é a morte última!”

Acho melhor que leias as tuas palavras do que esta minha carta. Verificarás como aquela morte que nos enche de medo é apenas a última, mas não a única!

Estou a ver o que procuras: queres saber qual a valorosa máxima, qual o útil preceito filosófico que eu escolhi para inserir nesta carta. Vou enviar-te uma coisa decorrente da própria matéria que tenho estado a tratar. Epicuro não censura com menos vigor os homens ansiosos pela morte do que os que dela se mostram receosos. Diz ele: “É ridículo correr para a morte por aborrecimento à vida, quando é o tipo de vida assumido que provoca a vontade de correr para a morte. ” E num outro passo escreve: “Que coisa mais ridícula é o desejo da morte quando é o medo da morte que enche a vida de inquietação! ”. Podes juntas a estas, outra situação não menos ridícula: é tão grande a insensatez, direi mesmo a loucura dos homens, que alguns há até que se suicidam… por medo de morrer!… Se meditares em algum destes tópicos ganharás força de ânimo para suportar que a morte que a vida. Em ambos os sentidos devemos receber incitamento e firmeza, para que nem amemos demasiado a vida nem a odiemos em excesso. Mesmo quando a razão aconselhar a pôr termo à própria vida, nunca uma tal decisão deve ser tomada impensada e impulsivamente. Um homem corajoso e sábio não deverá fugir da vida, mas sim sair dela; acima de tudo importa evitar uma paixão que tem assaltado muita gente: a paixão pela morte. Como em relação a outros assuntos, também em relação ao fenômeno da morte existe uma inconsiderada tendência de espírito capaz de dominas frequentemente quer homens animosos e de caráter firme, quer gente sem força e sem coragem: só que enquanto os primeiros sentem desprezo pela vida, os outros não lhe suportam o peso. Muitas pessoas fartam-se de fazer e ver sempre a mesma coisa e são assim levaras a sentir, não ódio, mas náusea apela vida. Aliás, até a própria filosofia nos pode conduzir a essa náusea quando nos diz: “Até quando aguentaremos sempre o mesmo? Nunca faremos outra coisa senão acordar e adormecer, comer e sentir fome, ter frio e calos?! Coisa alguma tem um termo, está tudo urdido em círculo, tudo se sucede alternadamente sem parar: a noite põe termo ao dia, e o dia à noite, o verão vai findar no outono, ao outono segue-se o inverno, que por seu turno é destronado pela primavera; tudo passa para regressar novamente. Não realizamos nada de novo, não vemos nada de novo; e aqui reside por vezes a causa da náusea! ”. Muitos são os que pensam que a vida, não sendo dura, é supérflua.

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 23

Antes de iniciar o texto, um breve comentário. Não acredito em transformação sem trabalho, nem respostas fáceis para questões complexas. Então, para realmente conhecer o livro e as ideias de Séneca, deve-se estudar e ler Séneca, em particular o livro que está sendo publicado aqui aos poucos. A carta a seguir revela o que o filósofo pensava sobre felicidade, como alcançá-la e, na minha opinião, é uma das cartas mais interessantes do livro.


 

Não penses que te escrevo para dizer como o inverno que, aliás, foi curto e pouco rigoroso, se portou bem conosco, ou como a primavera está desagradável, ou, como o frio chegou fora de tempo! Isso são frioleiras próprias de quem fala por falar. Eu só escrevo aquilo que sinto ter utilidade, que para ti quer para mim. Que outra coisa posso, portanto, fazer além de incitar-te à conquista de sabedoria? Queres saber qual o fundamento de sabedoria? Não tirar satisfação de coisas vãs. Falei em fundamento: na realidade é o ponto culminante. Só atinge o ponto supremo quem sabe em que consiste a verdadeira satisfação, quem não deixa a sua felicidade a arbítrio dos outros. Dica sempre angustiado e inseguro de si o homem que se deixa solicitar por toda e qualquer esperança, ainda que ao seu alcance, ainda que fácil de realizar, ainda que nunca esse homem tenha sido iludido nas suas expectativas. O que tens a fazer antes de mais, caro Lucílio, é aprende a ser alegre. Estás a pensar que eu te quero privar de muitos prazeres ao afastar de ti os bens fortuitos, ao entender que devemos subtrair-nos ao doce canto das sereias que é a esperança? Pelo contrário, o meu desejo é que nunca te falte a alegria. O meu desejo é que a alegria habite sempre em tua casa; e fá-lo-á, se começar a habitar dentro de ti. Os outros tipos de alegria não satisfazem a alma; desanuviam o rosto, mas são superficiais. A menos que entendas que estar alegre é estar a rir! Não, a alma deve estar desperta, confiante, acima das contingências. Acredita-me, a verdadeira alegria é uma coisa muito séria. Julgas tu que se pode pensar em desprezar a morte, em abrir as portas à pobreza, em refrear os prazeres, em exercitar a capacidade de suportar a dor – e tudo isto sem franzir a testa, sempre o com o rosto, como diriam os nossos jovens pretensiosos, descontraído? Quem interioriza estes pensamentos alcança uma grande alegria, mas de ar pouco sorridente! O meu desejo é que tu possuas uma alegria deste tipo. Quando algum dia souberes de que fonte emana essa alegria, nunca mais ela deixará de te acompanhar. Os filões dos metais ligeiros encontram-se à superfície, mas os metais mais preciosos são aqueles cujos veios se encontram mais fundo e que, por isso mesmo, compensam muita mais quem os explora. Os prazeres com que o vulgo se deleita são ligeiros e superficiais, toda a alegria de importação carece de fundamento. A alegria de que estou falando e à qual me esforço por fazer-te aceder, essa é de natureza constante, e tanto mais dilatada, quanto mais íntima. Peço-te, Lucílio amigo, age da única maneira possível para obteres a felicidade, repele e despreza aqueles bens que só brilham por fora, que dependem das promessas de fulano ou das benesses de cicrano. Faz do verdadeiro bem o teu alvo, busca a alegria dentro de ti. Que significa “dentro de ti”? Significa que a felicidade se origina em ti mesmo, na melhor parte de ti mesmo. Este nosso corpo, embora sem ele nada possamos fazer, considera-o como um utensílio, indispensável, sim, mas não valioso. O corpo alicia-nos para prazeres ilusórios, de custa duração, prazeres que nos repugnam mal terminam e que, se não forem doseados com extrema moderação, acabam por se tornar no seu contrário. Assim mesmo: o prazer está à beira de um precipício, e transforma-se em dor se não for gozado segundo a justa medida. Por outro lado, é difícil guardar a justa medida daquilo que se nos afigura um bem. Ora o desejo do verdadeiro bem está ao abrigo deste risco. Se queres saber em que consiste e donde provém o verdadeiro bem, vou os dizer: consiste na boa consciência, nos propósitos honestos, nas ações justas, no desprezo pelos bens fortuitos, no ritmo tranquilo e constante de uma vida que trilha um único caminho. Aqueles que estão continuamente a mudar de intenções e não apenas a mudar, mas a deixarem-se arrastar ao sabor do acaso, como poderão apoiar-se em alguma certeza permanente se eles próprios são hesitantes e instáveis? Raros são os homens que conseguem ordenar refletidamente a sua vida. Os outros, à maneira de destroços arrastados por um rio, em vez de caminharem deixam-se levar à deriva. Se a corrente é fraca ficam parados na água quase estagnada, se é forte, são arrastados com violência: a uns, deixa-os a corrente em seco ao abrandar junto à margem, a outros, um fluxo impetuoso acaba por lança-los ao mar. Por isso mesmo é que nós devemos fixar de uma vez por todas o que queremos e manter-nos firmes nesse propósito.

É chegado o momento de pagar a minha dívida. Poderei fazê-lo citando um dito do teu caro Epicuro com o qual darei por desobrigada esta carta: “É lamentável estar-se perpetuamente no começo da vida.”. Talvez a mesma ideia se possa exprimir com mais clareza desta outra forma: “Vivem mal os homens que estão sempre começando a viver”. Não entendes porquê? De fato, esta frase exige uma explicação. O que se passa é que tais homens têm permanentemente uma vida incompleta, pois quando se está ainda no início da vida não se pode estar já preparado para a morte. Devemos agir de modo a que em qualquer altura já tenhamos vivido o bastante, coisa fora do alcance de quem está sempre procurando um rumo para a sua vida. E não penses que são poucos os homens nessas circunstâncias: são praticamente todos! Há mesmo quem comece a viver na hora quem que devia morrer. Parece-te estranho? Pois vou dizer-te uma coisa aparentemente ainda mais estranha: há homens que deixaram de viver antes mesmo de terem começado!

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 22

Já percebeste que deves subtrair-te a essas tuas ocupações ilusórias e nocivas, mas ignoras ainda o modo de o conseguir. Ora, há coisas que só estando presente te posso indicar! O médico também não pode determinar por carta a hora adequada para a alimentação ou para o banho: tem de tomar o pulso ao doente. Diz um antigo provérbio que o gladiador só forma o seu plano na arena a partir da observação do rosto do adversário, do modo como move os braços, da própria postura do corpo. Observações sobre os costumes, sobre os deveres, é possível fazê-las de um modo geral e por escrito; são conselhos que se podem dar não só a ausentes, como até à posteridade. Mas a maneira e a ocasião de tomar uma decisão concreta, isso ninguém pode aconselhá-lo a distância, é forçoso deliberar em face das próprias circunstâncias. Para captar a oportunidade no momento justo é preciso não só estar presente, como estar atento. Põe-te, por conseguinte na expectativa, e assim que surpreenderes a oportunidade agarra-a com toda a rapidez, com toda a energia, e liberta-te definitivamente desses teus falaciosos deveres! Repara bem no conselho que te dou: em meu entender tens de libertar-te desse tipo de vida, ou de deixar a vida, sem mais. Mas penso também que deves proceder gradualmente, que é preferível desatar do que cortar os laços em que, para teu mal, te enredaste, na condição, porém, de estares disposta a corte-los se não houver maneira alguma de os desatar. Ninguém é tão medroso que prefira estar sempre em desequilíbrio para começar, não te metas em mais trabalho; contenta-te com as ocupações a que te comprometeste, ou, como pareces preferir dizer, a que as circunstâncias te comprometera. Não deves abalançar-te a novas tarefas, ou então não terás mais pretextos para acusar as circunstâncias! Dizeres, como é habitual: “Não podia fazer de outro modo, embora o não quisesse, a necessidade a isso me obrigava! ” Não passa de falsas desculpas. Ninguém é obrigado a procurar a felicidade a passo de corrida; já é qualquer coisa que, embora não lutemos contra ela, pelo menos paremos e não nos deixemos levar pela fortuna!

Não vais ofende-te se eu, não me limitando a aconselhar-te, invocar em meu auxílio a autoridade de outro, mais experimentados do que eu, a cuja opinião me arrimo sempre que me vejo forçado a tomar uma decisão?! Vais ler uma carta de Epicuro dedicada precisamente a este problema, a carta a Idomeneu. Epicuro exorta o amigo a despojar-se de todo o seu poder tão rápido quanto possível, antes que intervenha alguma força maior e o prive da liberdade de retirar-se. Acrescenta, no entanto, que não devemos tomar qualquer atitude senão quando encontramos o momento certo para o fazer mas quando ocorrer esse momento tão longamente desejado, há que saltar logo a agarrá-lo! Se nos preparamos para a fuga, diz ele, não poderemos deitar-nos a dormir, e mesmo para as situações mais difíceis haverá sempre esperança de salvação se nem nos precipitarmos antes de tempo, nem hesitarmos quando chegar a hora. Imagino que desejarás agora conhecer a posição dos estóicos. Ninguém terá autoridade para lhes lançar a acusação de temeridade: os estóicos são mais prudentes ainda do que corajosos.

Possivelmente esperarias que te dissessem: “É uma vergonha ceder ao peso das responsabilidades; cumpre com os deveres de que foste incumbido. Um homem forte e valoroso não foge ao seu dever, antes pelo contrário, as próprias dificuldades aumentar a sua força de ânimo! ”. Sim, estas serão as palavras dos estóicos enquanto valer a pena mantermo-nos firmes no nosso posto, enquanto não formos constrangidos a fazer ou a suportas nada que seja indigno de um homem de bem. Ser não for este o caso, o estóico não se arruinará num esforço indigno e ultrajante, não se manterá ativo apenas para se manter ativo! Não fará seque aquilo que esperarias vê-lo fazer, ou seja, aguentar permanentemente o embate das grandes manobras políticas. Quando o estóico se der conta de que está envolvido numa situação opressiva, dúbia, ambígua deve recuar; não voltar as costas, mas sim retirar-se gradualmente para lugar seguro. Não é difícil, caro Lucílio, fugir às ocupações quando se não atribui qualquer valor aos benefícios dessas ocupações. Quem se deixa enlear e reter por elas fá-lo em virtude deste raciocínio: “Ai de mim! Então hei de renunciar a tão belas promessas? Hei de retirar-me antes de fazer a colheita? Hei de ver-me abandonado pelos meus clientes, sem escolta para a minha liteira, sem visitantes no meu vestíbulo? ”. Aqui tens aquilo de que os homens se recusam a prescindir: ainda que abominem as misérias da vida pública, adora as suas recompensas! Queixam-se da própria ambição como quem se queixa de uma amante: se analisarmos o que lhes vai na alma, o que encontramos não é ódio, mas apenas um passageiro ressentimento! Penetra no íntimo destes homens que deploram a carreira por eles próprios escolhida, que falam em retirar-se de uma situação sem a qual não podem passar e verificarás que, no fundo, eles se mantêm voluntariamente numa atividade que, ao ouvi-los, pareceria só lhes trazer amargura e contrariedade! Acredita-me, Lucílio: poucos são os homens dominados pela servidão, mas muitos os que deliberadamente se submetem a ela. Quanto a ti, se a tua intenção é libertar-te dos entraves, se estás sinceramente disposto a abraçar a liberdade, se adias o corte com a vida pública apenas para te precaveres conta qualquer preocupação futura, então poderás contar com o aplauso de todos os seguidores do estoicismo. Todos os Zenões e Crisipos te aconselharão a modéstia, a honestidade, o culto do teu próprio bem. Se, porém, as tuas hesitações se devem à preocupação de calcular os bens a preservar e o montante de dinheiro com que prover ao ter ócio, então, nunca conseguirás escapar: ninguém se salva de um naufrágio com a bagagem às costas! Eleva-te a uma forma de vida superior graças ao favor dos deuses, mas não daquele favor que eles fazem quando, de rosto sereno e afável, concedem aos homens benesses esplendorosas mas maléficas, com a única desculpa de que tais favores – fontes de angústias e de tortura – são dados para satisfazer os votos dos fiéis!

Já tinha gravado o meu sinete nesta carta; tenho agora de a reabrir, para que ela chegue às tuas mãos com a pequena dádiva habitual, isto é, levando consigo alguma esplêndida sentença. E veio-me à ideia uma máxima em que não sei se é mais de admirar a veracidade ou a eloquência. De quem? De Epicuro: como vês, continua a explorar a casa alheia. Aqui vai ela: “Não há ninguém que não abandone esta vida como se tivesse acabado de entrar nela! ”. Observa quem tu quiseres, jovem, velho, homem de meia idade: em todos encontrarás por igual o medo perante a morte e a ignorância perante a vida. Ninguém dá por acabado o que quer que seja, todos adiam os seus interesses para o futuro. Nada me quadra tanto nesta máxima como a acusação de infantilismo feita aos velhos. Epicuro diz que todos estamos ao abandonar a vida no mesmo ponto em que estávamos ao nascer. Não é exato: somo piores ao morrer do que ao nascer. E nisto o defeito é nosso, não da natureza. Esta teria direito a queixar-se de nós: “Que é isto? Eu gerei-vos sem ambições, sem medos, sem superstições, sem maldade, sem qualquer outro vício do mesmo jaez. Sai, portanto, como entrastes! ”. Um homem que esteja tão seguro no momento de morrer como estava ao nascer, esse homem alcançou a sabedoria! Mas o que se passa é que, quando o perigo se aproxima, trememos de medo, o nosso ânimo perturba-se, nos altera a cor do rosto, tombam-nos dos olhos lágrimas perfeitamente inúteis. Que vergonha, deixarmo-nos tomar pela angústia ao atingirmos o limiar da segurança eterna! A razão é que, vazios por completo dos verdadeiros bens, lamentamos então o desperdício da vida! Nenhuma parte dela permanece nas nossas mãos: a vida passou por nós, escoou-se! Ninguém se preocupa em viver bem, mas sim em durar muito, quando afinal viver bem está ao alcance de todos, ao passo que durar muito não está ao de ninguém.

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 21

Pensas que te dão problemas essas pessoas de que falas na tua carta? O maior problema vem de ti mesmo, tu é que te prejudicas a ti próprio. Não estás certo do que pretendes, tens mais facilidade em louvar do que em praticar a virtude, e embora saibas onde reside a felicidade não ousas aproximar-te dela. O que te retém, afinal? Vou dizer-te, já que tu pareces não ter do caso uma noção clara. Tu atribuis uma certa grandeza ao tipo de vida que deverás abandonar, embora tenhas uma antevisão da vida sábia e tranquila que a que irás aceder, o brilho aparente da vida mundana continua a atrair-te, como se o fato de abandonares a sociedade equivalesse a caíres numa vida de obscuridade completa. Estás enganado, Lucílio: passar da vida mundana à vida da sabedoria é uma ascensão! A luz distingue-se do reflexo por ter a sua origem em si mesma, enquanto o reflexo brilha com luz alheia; a mesma diferença separa os dois tipos de vida: a vida mundana tira o seu brilho de circunstâncias exteriores, e o mínimo obstáculo imediatamente a torna sombria; a vida do sábio, essa brilha com a própria luminosidade! Os teus estudos farão de ti um homem ilustre e famoso. Posso citar-te como exemple um caso passado com Epicuro. Numa carta a Idomeneu, que então era ministro do poder real e encarregado de importantes responsabilidades, Epicuro, para o afastar dessa vida de ilusória grandeza e o aliciar para a glória certa e firme da sabedoria, disse-lhes: “Se estás interessado na glória, as minhas cartas dar-te-ão renome superior a esses cargos que tu procuras _ e que tornam a tua pessoa tão procurada! ”. Será que Epicuro se enganou? Quem conheceria hoje Idomeneu se o filósofo o não citasse na sua correspondência? Todos os grandes da corte, todos os sátrapas, o próprio rei que concedeu o cargo a Idomeneu, jazem no mais profundo esquecimento. São as cartas de Cícero que não deixam esquecer o nome de Ático. De nada lhe serviria ter tido como genro Agripa, como “genro-neto” Tibério, como bisneto Druso César; no meio de tão ilustres nomes, o nome de Ático permaneceria esquecido se Cícero o não tivesse ligado para sempre ao seu. Um dia passará sobre nós toda a profundidade do tempo; apenas uns quantos gênios se elevarão de entre a massa e, antes de algum dia mergulharem também no mesmo silêncio, resistirão ao esquecimento e manterão vivo o seu nome! O mesmo que Epicuro prometeu ao seu amigo, eu prometo a ti, Lucílio: a posteridade há de recordar-se de mim, hei de fazer com que alguns nomes perdurem por estarem ligados ao meu. O grande Virgílio prometeu a imortalidade a dois dos seus heróis, e cumpriu a promessa:

                Feliz par de heróis! Se algum poder tiverem os meus versos, nunca a posteridade esquecerá o vosso nome, enquanto a casa de Eneias se erguer sobre o rochedo firme do Capitólio, e o senado de Roma conservar o seu império! ”

Todos aqueles que a fortuna pôs em evidência, que se distinguiram como agentes e partícipes de um poder alheio, somente gozaram de reputação e viam as suas casas cheias de visitantes enquanto em posição de destaque: assim que desapareceram, rapidamente foram esquecidos. Em contrapartida, o pareço que de sã aos homens de gênio cresce sempre; e não são apenas eles que recebem homenagens, mas tudo quanto está ligado à sua memória.

Não será em vão que a minha carta mencionou o nome de Idomeneu: será ele o encarregado de pagar o meu tributo. Foi em carta a Idomeneu que Epicuro escreveu aquela nobilíssima máxima em que o aconselhava a não seguir a via comum e ilusória para enriquecer Pítocles: “Se quiseres – disse Epicuro – enriquecer Pítocles, não aumentes o teu patrimônio, diminui antes os seus desejos”. Esta sentença é demasiado clara para necessitar de comentários e demasiado eloquente para carecer de adornos. Apenas te faço notar que não deves entende-la somente em referência a outras circunstâncias. Se quiseres fazer de Pítocles um homem respeitável, não deves acrescentar as suas honras, mas diminuir os seus desejos; se quiseres que Pítocles envelheça tento uma vida sempre cheia, não deves acrescentar-lhe anos de vida, mas sim diminuir os seus desejos. Não julgues que estas sentenças são propriedade de Epicuro: elas pertencem a todos! Em matéria de filosofia entendo que se pode proceder como no senado: se alguém faz uma proposta que me agrada apenas em parte, mando-o dividir a proposta em alínea, e dou o meu voto à alínea que aprovo.

Eu cito de tanto melhor vontade os ditos notáveis de Epicuro para fazer entender àqueles que seguem a sua doutrina na esperança perversa de encontrarem nela um manto que lhes proteja os vícios, como em todo o lado é necessário levar uma vida honesta. Ao chegar ao pequeno jardim de Epicuro, ao ler a inscrição da entrada: “Visitante, terás aqui uma agradável estadia, pois aqui o bem supremo é o prazer! ” -, encontrarás à tua disposição o guardião dessa morada, um homem acolhedor, amável, que te apresentará uma malga de polenta e te servirá água à discrição, inquirindo sempre se te agrada a recepção. E dir-te-á: “Este humilde jardim não desperta apetites, antes os sabia; não aumenta a sede à força de bebidas excessivas, antes a acalma de um modo natura e salutar. São estes os prazeres que me fizeram chegar a velho! ”. Estou-me referindo a desejos que se não contentam de consolações verbais, que necessitam, portanto, de algo concreto para se satisfazerem. Quanto aos desejos incontrolados mas que é possível adiar, e mesmo refrear e reprimir, faço-te notar um ponto que é válido para todos eles: o prazer que originam pode ser natural, mas não é necessário. É um prazer a que tu só darás satisfação se quiseres. O estômago não se contenta com sentenças: reclama, e exige ser satisfeito. Não é, todavia, um credor muito exigente: ir-se-á embora com pouco desde que lhes dê apenas o que deves, e não tudo quanto podes.

CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 2, CARTA 20

Se estás bem de saúde, se te consideras digno de seres um dia senhor de ti mesmo, fico contente. Será minha glória, se porventura te subtrair a esse mar de incertezas onde erras, sem esperança, à deriva. Há, porém, uma coisa que te peço, meu caro Lucílio, com todo o empenho: interioriza a filosofia no mais íntimo de ti mesmo e fundamenta a avaliação do teu progresso não em palavras que digas ou escrevas, mas sim na tua firmeza de ânimo e na diminuição dos teus desejos; comprova as palavras com os atos! Diferente é o propósito dos declamadores que pretendem ganhar o aplauso da assistência, diferente é também o dos conferencistas que atraem a atenção dos jovens e dos ociosos pela variedade dos temas ou pela elegância da exposição; a filosofia, essa ensina a agir, não a falar, exige de cada qual que viva segundo as suas leis, de modo que a vida não contradiga as palavras, nem seque se contradiga a si mesmo; importa que todas as nossas ações sejam do mesmo teor. O maior dever – e também o melhor sintoma – da sabedoria é a concordância entre as palavras e os atos, o sábio será em todas as circunstâncias plenamente igual a si próprio. “Mas quem será capaz de atingir um tal nível?” Poucos, decerto, mas mesmo assim, alguns! Não escondo que a empresa é difícil; nem te digo que o sábio avançará sempre ao mesmo ritmo, embora o rumo sempre seja o mesmo. Auto-analisa-te, portanto, e verifica se já discordância entre a tua roupa e a tua casa, se és pródigo para contigo mas mesquinho para com os teus, se é frugal a tua ceia mas luxuosa a tua habitação. Adota de uma vez por todas uma regra de conduta na vida e faz com que toda a tua vida se conforme com essa regra. Há pessoas que se retraem em casa e que se expandem sem inibições fora dela; semelhante variedade de atitudes é viciosa, é indício de um espírito hesitante que ainda não achou o seu ritmo próprio. Posso explicar-te, aliás, donde provém esta inconstância, esta divergência entre os propósitos e as ações. A causa é que ninguém fixa nitidamente aquilo que quer nem, se o fez, permanece fiel ao seu propósito, antes pretende ir mais além; e não se trata apenas de mudar de objetivo, acaba-se por voltar atrás e de novo cair na situação anteriormente rejeitada e condenada. Em suma, deixando as antigas definições de sabedoria e abarcando numa fórmula todo o ciclo de vida humana, acho que seria bastante dizer isto: a sabedoria consiste em querer, e em não querer, sempre a mesma coisa. Não é necessário acrescentar, como condição, que devemos querer o que é justo, porque só é possível querer sempre a mesma coisa se essa coisa for justa. Ora sucede que as pessoas ignoram o que querem exceto no próprio momento do querer;  ninguém determina de uma vez por todas o que deve querer ou não querer; todos os dias se muda de opinião, mudança por vezes diametralmente oposta; para muitos, em suma, a vida não passa de um jogo! Quanto a ti, mantém-te fiel ao propósito que adotaste, e assim conseguirás talvez atingir o ponto máximo, ou pelo menos um ponto tal que apenas tu compreenderás não ser ainda o máximo.

O que será então feito de toda esta gente que forma a minha casa quando essa casa deixar de existir?” Quando toda essa gente deixar de se alimentar à tua custa, passará a fazê-lo à sua própria; e tu, aquilo que nunca conseguirás saber através de tuas benesses, sabê-lo-ás graças à tua pobreza – o mostrar-nos quem de fato nos ama? Quando virá o dia em que ninguém te mentirá para te ser agradável?! Dirige, pois, as tuas meditações, os teus esforços, as tuas opções para este objetivo – viveres contente contigo próprio e com os bens que de ti provêm, – e deixa a cargo da divindade todos os teus outros votos. Poderá haver uma felicidade mais ao nosso alcance? Reduz-te a uma posição humilde de que te não seja possível decair. Para te ajudar a fazer isto mais animosamente servirá o tributo desta carta, que prontamente vou oferecer.

Podes olhar-me de revés à vontade: ainda desta vez será Epicuro o encarregado de saldar a minha dívida! Diz ele: “Acredita no que te digo, as tuas palavras ganharão maior força se dormires numa enxerga e te vestires de andrajos, pois deste modo atestarás na prática que as tuas palavras não são apenas palavras!”. Eu sou forçado a dar outra atenção ao que diz o nosso Demétrio porque o vi seminu, deitado numa coisa a que seria exagero chamar enxerga: um tal homem não ensina a verdade, dá testemunho dela!

Pois quê?” – dirás tu. – “Não é possível sentir desprezo pelas riquezas que temos na nossa posse?” Claro que é possível. Um homem que as veja à sua volta, que longamente se admire como elas chegaram até si, que se ria delas e as tenha como suas, não porque as sinta como tais, mas por “ouvir dizer” – tal homem é um espírito superior. É altamente importante não nos deixarmos corromper pela vizinhança da riqueza; viver como pobre no meio da riqueza é indício de grandeza de alma’.

Não sei” – objetarás – “como tal homem poderás suportar a pobreza se nela caísse de repente.” Também eu não sei, Epicuro, como o teu pobre fanfarrão desprezaria a riqueza se nela caísse de repente! Por isso mesmo, num caso e noutro, importa averiguar a verdadeira intenção, e verificar se este no fundo não gosta da pobreza e se aquele no fundo não gosta mesmo de ser rico. A enxerga e os andrajos não são indicio seguro de uma mentalidade superior senão quando é evidente que eles são motivados por uma opção, e não suportados por necessidade. Mais ainda, um caráter nobre não procura apressadamente a miséria por ser uma situação preferível; prepara-se, porém, para ela com uma situação fácil de aguentar. E é efetivamente fácil, Lucílio, e mesmo agradável, quando acedemos a ela depois de uma meditação já vinda de longe. Há na pobreza uma coisa indispensável para termos alegria: a segurança, Julgo, por conseguinte, ser necessário fazer o que, conforme já te disse noutra carta, alguns grandes homens fizeram várias vezes: reservar alguns dias para, vivendo numa pobreza imaginária, nos prepararmos para a verdadeira. Coisa tanto mais necessária quanto nós, amolecidos pela vida fácil, consideramos tudo como duro e penoso. Há que despertar do sono a nossa alma. Há que espicaçá-la, há que mostrar-lhe como é exíguo o que a natureza nos concedeu. Ninguém nasce rico; no momento de vir à luz temos de contentar-nos com uma fralda e um pouco de leite: e é a partir de tais começos que chegamos a pensar que um reino é estreito para nós!