Dizes-me que te preocupa qual será o resultado de um processo intentado contra ti por um inimigo furibundo e julgas que eu poderei persuadir-te a teres melhores pensamentos e a te deixares envalar por esperanças lisonjeiras. Mas para quê estares a sofrer antecipadamente com os teus males, que aliás se farão sentir bem depressa, e a estragares o presente com o medo do futuro? É pura estupidez, lá pelo fato de um dia teres de ser infeliz, começares a ser infeliz desde já. Mas vou procurar incutir-te calma por outra via. Se queres libertar-te de toda e qualquer angústia, imagina que sucede mesmo aquilo que receias venha a suceder, e, seja qual for esse mal, avalia bem a sua extensão e toma simultaneamente o peso aos teus receios. Depressa perceberás que o objeto do teu medo é de pouca monta, ou de curta duração. Se para ganhares coragem necessitas de exemplos, não custa muito arranjá-los: em qualquer época os há com abundância. Em qualquer período da história, seja romana seja de outras nações, depararás com homens dotados de serenidade filosófica, ou ao menos capazes de corajosos arrebatamentos. Supões que és condenado: oi mais grave que te pode suceder é seres exilado ou preso. Há algo de mais terrível do que ser torturado pelo fogo, ou sofrer uma morte violenta? Passa em revista todas as possíveis situações, evoca a imagem de todos os que já por elas passaram sem tremer. O problema não é descobrir exemplos, mas sim escolhê-los. Rutílio suportou a sua condenação fazendo notar que o que lamentava no processo não era o resultado, mas a injustiça. Metelo sujeitou-se ao exílio com coragem, Rutílio até com alegria! O primeiro concedeu à República o favor de retornar a Roma, o segundo transmitiu a sua recusa de regressar a Sula, o ditador a quem então ninguém ousava recusar o que quer que fosse. Sócrates discutia filosofia na prisão e embora alguns amigos quisessem libertá-lo ele negou-se a sair; ficou no cárcere para exemplo de que não devemos recear essas duas coisas que tanto assustam os homens: a morte e a prisão. Múcio colocou a própria mão sobre as brasas. Suportar o fogo é doloroso, e mais doloroso ainda se impomos esse tormento a nós próprios. E, no entanto, Múcio, um homem inculto, desprovido de quaisquer preceitos filosóficos que o defendessem contra a dor e a morte, dotado somente da sua energia de militar, puniu-se a si mesmo pelo fracasso da sua empresa. Ficou observando a pé firma a mão consumir-se no braseiro inimigo; e nem sequer foi ele quem a retirou, já queimada até aos ossos, foi o próprio inimigo quem afastou dele o braseiro. Na sua expedição ao equipamento etrusco Múcio podia ter sido mais afortunado, mais valente, nunca. Vê, pois, como a autêntica coragem é mais expedita a afrontar os perigos do que a crueldade o é a suscitá-los. Teve mais facilidade Porsena em perdoar a Múcio a tentativa de assassínio, do que Múcio em desculpar a si próprio o fracasso.
Sei o que vais dizer: “Essas histórias são repisadas em todas as escolas: quando daqui a pouco tratarmos o problema do desprezo pela morte, já sei que virás com a história de Catão! ”. E porque não hei de contar-te o que foi a sua última noite, passada a ler um texto de Platão com a espada à cabeceira do leito? Para a sua hora suprema Catão precavera-se com estes dois instrumentos: o primeiro garantia-lhe a vontade, o segundo a possibilidade de morrer. Tomadas todas as providências, aquelas que poderiam ser tomadas numa situação sem saída possível, Catão arranjou-se de modo a que ninguém soubesse o direito de mata-lo ou a possibilidade de salvá-lo. Desembainhando a espada, que até esse momento guardara pura de sangue humano, exclamou: “Foram infrutíferas, Fortuna, as tuas tentativas de obstar aos meus propósitos. Não combati até hoje pela minha própria liberdade, mas pela da pátria; todo o meu esforço tendeu, não a viver livre, mas a viver entre homens livres. E agora que já não há esperança para o gênero humano, Catão irá acolher-se a lugar seguro.”. Desferiu depois em si mesmo um golpe mortal; os médicos ligaram-lhe a ferida, mas Catão, perdendo sangue, perdendo as forças mas guardando a mesma energia de ânimo, mais irado já consigo do que com César, levou à feria as mãos nuas e, mais do que abrir-lhe caminho, expulsou de si a sua alma nobilíssima, que tanto desprezo sentia por toda e qualquer forma de poder!
Não estou a coligir exemplos apenas para aguçar o engenho, mas para que te sirvam de exortação contra aquele que imaginamos ser o mais terrível dos males. As minhas exortações tornar-se-ão mais fáceis se te demonstrar que não são apenas os heróis a desprezar o momento de exaltar o último suspiro, mas que até mesmo homens pusilânimes são capazes em certas situações de se elevar ao nível dos mais valorosos no momento decisivo. Foi este o caso de Cipião, sogro de Gneu Pompeio. Arrastado para a costa de África por ventos contrários, ao ver o seu navio ocupado pelos inimigos, trespassou-se com a espada, e, quando aqueles lhe perguntaram o que era feito do general, respondeu: “O general está são e salvo! ”.: que forma de morrer haveria mais digna de um general, e de um general das tropas de Catão? Não vou remeter-te para os livros de história, não vou enumerar todos os homens, e muitos são, que através dos tempos têm demonstrado desprezo pela morte. Considera apenas a nossa época, de cuja moleza e volúpia amargamente nos queixamos. Em todas as ordens sociais, em todos os graus de fortuna, em todos os níveis etários te saltarão à vista muitos homens que puseram fim aos seus males com a morte. Acredita no que te digo, Lucílio: não só não devemos recear a morte, como a ela devemos o termo dos nossos receios! Ouve, pois, com calma as ameaças desse teu inimigo! E embora a consciência te diga que deves estar confiante, como no processo intervêm muitos fatores de ordem externa, ainda que esperes te seja feita justiça, prepara-te para a hipótese de vires a ser vítima da maior injustiça! Acima de tudo nunca te esqueças disto: não dês a menor importância ao aparato exterior, analisa com cuidado todos os fatores em jogo, e verás que, na tua situação, a única coisa temível é o teu próprio temor. Conosco passa-se o mesmo fenômeno habitual nas crianças (o que bem comprova que nós não passamos de crianças grandes): elas assustam-se quando veem mascaradas as pessoas a quem amam, a quem estão habituadas, com quem brincam. Pois o que nós temos a fazer é tirar a máscara, não só às pessoas, como às coisas, e restituir a cada uma o seu rosto próprio! Para que essa exibição de gládios e fogueiras, essa multidão de carrascos que se agita a tua volta? Despoja-te desse aparato sob o qual te ocultas para assustar os insensatos: tu és apenas a morte, aquela morte que ainda há pouco o meu escravo, a minha escrava afrontaram sem temor! Para que essa outra exibição, em grande estilo, de chibatas e mesas de tortura? Para que todo esse cortejo de instrumentos especializados cada um esquartejar a sua parte do corpo, todas essas máquinas destinadas a reduzir um homem a pedaços? Afasta todo esse aparato visual que nos deixa mudos de medo, põe termo aos gemidos e aos ais, aos agudos gritos de dor suscitados pelo tormento: tu és apenas a dor, aquela mesma dor que o gotoso aguenta sem gritar, que o doente do estômago suporta enquanto como os mais delicados manjares, que a jovem parturiente sofre enquanto dá à luz! Se te posso suportar, és uma dor ligeira, se não posso, serás uma dor breve!
Medita continuamente nestas máximas, que aliás tem ouvido com frequência, e que tu próprios muitas vezes tem repetido. Deves, porém, comprovar pela experiência a veracidade do que tens ouvido e do que tu mesmo tens dito. A pior crítica que nos podem fazer é a acusação de repetirmos as sentenças da filosofia sem pormos em prática os seus ensinamentos. Não vais dizer-me que só agora reparaste que és um ser sujeita à morte, ao exílio ou à dor?! Estamos sujeitos a tudo isso desde o nascimento: pensemos, portanto, que nos vai mesmo suceder tudo quanto é susceptível de nos suceder. Estou certo de que já tens seguido este meu conselho. Não quero é deixar de exortar-te agora a que não deixes a tua angústia presente tomar-te conta do espírito, pois de contrário este acobardar-se-á e mostrar-se-á pouco vigoroso na altura decisiva. Desvia a atenção desse problema individual para os problemas comuns a todos. Repete a ti próprio que tens um corpo mortal e frágil, exposto a mil e uma dores, que não apenas as ocasionadas por agressões ou prepotências dos poderosos: os próprios prazeres degeneram em sofrimento, os banquetes são causa de indigestões, a embriaguez provoca o entorpecimento e o descontrole dos nervos, a sensualidade é origem de deformações nos pés, nas mãos, em todas as articulações. Vou empobrecer: serão mais numerosos os meus semelhantes. Vou ser exilado: imaginar-me-ei, nascido no local do meu exílio. Vou ser amarrado: e então, será que agora tenho os movimentos livres, eu, que a natureza criou amarrado a este peso que é o meu próprio corpo? Vou morrer: quer dizer, vou deixar de poder estar doente, de poder ser amarrado, vou deixar de estar sujeito à morte!
Não sou tão tolo que me vá pôr a repetir o refrão dos epicuristas: que é infundado o medo dos infernos, que não há roda alguma sobre a qual Ixíon seja arrastado, que não há qualquer monte por onde Sísifo empurre com os ombros o rochedo, que não há ninguém cujas vísceras possam diariamente renascer e ser comidas! Ninguém é infantil ao ponto de ter medo de Cérbero, das trevas, ou de fantasmas com túnicas cobrindo esqueletos descarnados. A morte, ou nos consome totalmente, privados do peso do corpo, resta-nos a melhor parte de nós mesmos. Se somos totalmente consumidos, então não resta mais nada, tanto a parte boa quanto a parte má são-nos retiradas igualmente. Dá-me licença que cite neste ponto um verso teu, mas sem deixar primeiro de lembrar-te que deves pensar que o escreveste tanto para uso dos outros como para uso próprio. É indecente dizer uma coisa e pensar outra; muito mais indecente será escrever lima coisa em que se não acredita! Lembro-me que um dia tu desenvolveste esta ideia, que nós, homens, não caímos na morte de repente, antes avançamos gradualmente para ela. Morremos diariamente já que diariamente ficamos privados de uma parte da vida; por isso mesmo, à medida que nós crescemos a nossa vida vai decrescendo. Começamos por perder a infância, depois a adolescência, depois a juventude. Todo o tempo que decorreu até ontem é tempo irrecuperável; o próprio dia em que estamos hoje, compartilhamo-lo com a morte. Não é a última gota que esvazia a clepsidra, mas toda a água que anteriormente foi escorrendo; do mesmo modo não é a hora final em que deixamos de existir a única que constitui a morte, mas sim a única que a consuma. Atingimos a morte nessa hora, mas já de há muito caminhávamos para ela. Ao descreveres esta situação com a tua eloquência habitual, sempre notável, as nunca tão sublime como quando pões a palavra a serviço da grande verdade, escreveste este verso:
“a morte ver gradualmente, a que nos leva é a morte última!”
Acho melhor que leias as tuas palavras do que esta minha carta. Verificarás como aquela morte que nos enche de medo é apenas a última, mas não a única!
Estou a ver o que procuras: queres saber qual a valorosa máxima, qual o útil preceito filosófico que eu escolhi para inserir nesta carta. Vou enviar-te uma coisa decorrente da própria matéria que tenho estado a tratar. Epicuro não censura com menos vigor os homens ansiosos pela morte do que os que dela se mostram receosos. Diz ele: “É ridículo correr para a morte por aborrecimento à vida, quando é o tipo de vida assumido que provoca a vontade de correr para a morte. ” E num outro passo escreve: “Que coisa mais ridícula é o desejo da morte quando é o medo da morte que enche a vida de inquietação! ”. Podes juntas a estas, outra situação não menos ridícula: é tão grande a insensatez, direi mesmo a loucura dos homens, que alguns há até que se suicidam… por medo de morrer!… Se meditares em algum destes tópicos ganharás força de ânimo para suportar que a morte que a vida. Em ambos os sentidos devemos receber incitamento e firmeza, para que nem amemos demasiado a vida nem a odiemos em excesso. Mesmo quando a razão aconselhar a pôr termo à própria vida, nunca uma tal decisão deve ser tomada impensada e impulsivamente. Um homem corajoso e sábio não deverá fugir da vida, mas sim sair dela; acima de tudo importa evitar uma paixão que tem assaltado muita gente: a paixão pela morte. Como em relação a outros assuntos, também em relação ao fenômeno da morte existe uma inconsiderada tendência de espírito capaz de dominas frequentemente quer homens animosos e de caráter firme, quer gente sem força e sem coragem: só que enquanto os primeiros sentem desprezo pela vida, os outros não lhe suportam o peso. Muitas pessoas fartam-se de fazer e ver sempre a mesma coisa e são assim levaras a sentir, não ódio, mas náusea apela vida. Aliás, até a própria filosofia nos pode conduzir a essa náusea quando nos diz: “Até quando aguentaremos sempre o mesmo? Nunca faremos outra coisa senão acordar e adormecer, comer e sentir fome, ter frio e calos?! Coisa alguma tem um termo, está tudo urdido em círculo, tudo se sucede alternadamente sem parar: a noite põe termo ao dia, e o dia à noite, o verão vai findar no outono, ao outono segue-se o inverno, que por seu turno é destronado pela primavera; tudo passa para regressar novamente. Não realizamos nada de novo, não vemos nada de novo; e aqui reside por vezes a causa da náusea! ”. Muitos são os que pensam que a vida, não sendo dura, é supérflua.
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