CARTAS A LUCÍLIO – LIVRO 3, CARTA 22

Já percebeste que deves subtrair-te a essas tuas ocupações ilusórias e nocivas, mas ignoras ainda o modo de o conseguir. Ora, há coisas que só estando presente te posso indicar! O médico também não pode determinar por carta a hora adequada para a alimentação ou para o banho: tem de tomar o pulso ao doente. Diz um antigo provérbio que o gladiador só forma o seu plano na arena a partir da observação do rosto do adversário, do modo como move os braços, da própria postura do corpo. Observações sobre os costumes, sobre os deveres, é possível fazê-las de um modo geral e por escrito; são conselhos que se podem dar não só a ausentes, como até à posteridade. Mas a maneira e a ocasião de tomar uma decisão concreta, isso ninguém pode aconselhá-lo a distância, é forçoso deliberar em face das próprias circunstâncias. Para captar a oportunidade no momento justo é preciso não só estar presente, como estar atento. Põe-te, por conseguinte na expectativa, e assim que surpreenderes a oportunidade agarra-a com toda a rapidez, com toda a energia, e liberta-te definitivamente desses teus falaciosos deveres! Repara bem no conselho que te dou: em meu entender tens de libertar-te desse tipo de vida, ou de deixar a vida, sem mais. Mas penso também que deves proceder gradualmente, que é preferível desatar do que cortar os laços em que, para teu mal, te enredaste, na condição, porém, de estares disposta a corte-los se não houver maneira alguma de os desatar. Ninguém é tão medroso que prefira estar sempre em desequilíbrio para começar, não te metas em mais trabalho; contenta-te com as ocupações a que te comprometeste, ou, como pareces preferir dizer, a que as circunstâncias te comprometera. Não deves abalançar-te a novas tarefas, ou então não terás mais pretextos para acusar as circunstâncias! Dizeres, como é habitual: “Não podia fazer de outro modo, embora o não quisesse, a necessidade a isso me obrigava! ” Não passa de falsas desculpas. Ninguém é obrigado a procurar a felicidade a passo de corrida; já é qualquer coisa que, embora não lutemos contra ela, pelo menos paremos e não nos deixemos levar pela fortuna!

Não vais ofende-te se eu, não me limitando a aconselhar-te, invocar em meu auxílio a autoridade de outro, mais experimentados do que eu, a cuja opinião me arrimo sempre que me vejo forçado a tomar uma decisão?! Vais ler uma carta de Epicuro dedicada precisamente a este problema, a carta a Idomeneu. Epicuro exorta o amigo a despojar-se de todo o seu poder tão rápido quanto possível, antes que intervenha alguma força maior e o prive da liberdade de retirar-se. Acrescenta, no entanto, que não devemos tomar qualquer atitude senão quando encontramos o momento certo para o fazer mas quando ocorrer esse momento tão longamente desejado, há que saltar logo a agarrá-lo! Se nos preparamos para a fuga, diz ele, não poderemos deitar-nos a dormir, e mesmo para as situações mais difíceis haverá sempre esperança de salvação se nem nos precipitarmos antes de tempo, nem hesitarmos quando chegar a hora. Imagino que desejarás agora conhecer a posição dos estóicos. Ninguém terá autoridade para lhes lançar a acusação de temeridade: os estóicos são mais prudentes ainda do que corajosos.

Possivelmente esperarias que te dissessem: “É uma vergonha ceder ao peso das responsabilidades; cumpre com os deveres de que foste incumbido. Um homem forte e valoroso não foge ao seu dever, antes pelo contrário, as próprias dificuldades aumentar a sua força de ânimo! ”. Sim, estas serão as palavras dos estóicos enquanto valer a pena mantermo-nos firmes no nosso posto, enquanto não formos constrangidos a fazer ou a suportas nada que seja indigno de um homem de bem. Ser não for este o caso, o estóico não se arruinará num esforço indigno e ultrajante, não se manterá ativo apenas para se manter ativo! Não fará seque aquilo que esperarias vê-lo fazer, ou seja, aguentar permanentemente o embate das grandes manobras políticas. Quando o estóico se der conta de que está envolvido numa situação opressiva, dúbia, ambígua deve recuar; não voltar as costas, mas sim retirar-se gradualmente para lugar seguro. Não é difícil, caro Lucílio, fugir às ocupações quando se não atribui qualquer valor aos benefícios dessas ocupações. Quem se deixa enlear e reter por elas fá-lo em virtude deste raciocínio: “Ai de mim! Então hei de renunciar a tão belas promessas? Hei de retirar-me antes de fazer a colheita? Hei de ver-me abandonado pelos meus clientes, sem escolta para a minha liteira, sem visitantes no meu vestíbulo? ”. Aqui tens aquilo de que os homens se recusam a prescindir: ainda que abominem as misérias da vida pública, adora as suas recompensas! Queixam-se da própria ambição como quem se queixa de uma amante: se analisarmos o que lhes vai na alma, o que encontramos não é ódio, mas apenas um passageiro ressentimento! Penetra no íntimo destes homens que deploram a carreira por eles próprios escolhida, que falam em retirar-se de uma situação sem a qual não podem passar e verificarás que, no fundo, eles se mantêm voluntariamente numa atividade que, ao ouvi-los, pareceria só lhes trazer amargura e contrariedade! Acredita-me, Lucílio: poucos são os homens dominados pela servidão, mas muitos os que deliberadamente se submetem a ela. Quanto a ti, se a tua intenção é libertar-te dos entraves, se estás sinceramente disposto a abraçar a liberdade, se adias o corte com a vida pública apenas para te precaveres conta qualquer preocupação futura, então poderás contar com o aplauso de todos os seguidores do estoicismo. Todos os Zenões e Crisipos te aconselharão a modéstia, a honestidade, o culto do teu próprio bem. Se, porém, as tuas hesitações se devem à preocupação de calcular os bens a preservar e o montante de dinheiro com que prover ao ter ócio, então, nunca conseguirás escapar: ninguém se salva de um naufrágio com a bagagem às costas! Eleva-te a uma forma de vida superior graças ao favor dos deuses, mas não daquele favor que eles fazem quando, de rosto sereno e afável, concedem aos homens benesses esplendorosas mas maléficas, com a única desculpa de que tais favores – fontes de angústias e de tortura – são dados para satisfazer os votos dos fiéis!

Já tinha gravado o meu sinete nesta carta; tenho agora de a reabrir, para que ela chegue às tuas mãos com a pequena dádiva habitual, isto é, levando consigo alguma esplêndida sentença. E veio-me à ideia uma máxima em que não sei se é mais de admirar a veracidade ou a eloquência. De quem? De Epicuro: como vês, continua a explorar a casa alheia. Aqui vai ela: “Não há ninguém que não abandone esta vida como se tivesse acabado de entrar nela! ”. Observa quem tu quiseres, jovem, velho, homem de meia idade: em todos encontrarás por igual o medo perante a morte e a ignorância perante a vida. Ninguém dá por acabado o que quer que seja, todos adiam os seus interesses para o futuro. Nada me quadra tanto nesta máxima como a acusação de infantilismo feita aos velhos. Epicuro diz que todos estamos ao abandonar a vida no mesmo ponto em que estávamos ao nascer. Não é exato: somo piores ao morrer do que ao nascer. E nisto o defeito é nosso, não da natureza. Esta teria direito a queixar-se de nós: “Que é isto? Eu gerei-vos sem ambições, sem medos, sem superstições, sem maldade, sem qualquer outro vício do mesmo jaez. Sai, portanto, como entrastes! ”. Um homem que esteja tão seguro no momento de morrer como estava ao nascer, esse homem alcançou a sabedoria! Mas o que se passa é que, quando o perigo se aproxima, trememos de medo, o nosso ânimo perturba-se, nos altera a cor do rosto, tombam-nos dos olhos lágrimas perfeitamente inúteis. Que vergonha, deixarmo-nos tomar pela angústia ao atingirmos o limiar da segurança eterna! A razão é que, vazios por completo dos verdadeiros bens, lamentamos então o desperdício da vida! Nenhuma parte dela permanece nas nossas mãos: a vida passou por nós, escoou-se! Ninguém se preocupa em viver bem, mas sim em durar muito, quando afinal viver bem está ao alcance de todos, ao passo que durar muito não está ao de ninguém.

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